“Entre 1940 e 1980, dá-se a verdadeira inversão quanto ao lugar de residência da população brasileira. (…) Nesses quarenta anos, triplica a população total do Brasil, ao passo que a população urbana se multiplica por sete vezes e meia.”
O trecho extraído de “A urbanização brasileira”, do geógrafo Milton Santos, nos lembra que nossa urbanização é fenômeno recente, que só se generaliza na segunda metade do século XX. Antes disso, o Brasil foi, durante séculos, essencialmente agrícola.
Como sinaliza Oliveira Vianna, “toda a nossa história é a história de um povo agrícola, é a história de uma sociedade de lavradores e pastores. É no campo que se forma a nossa raça e se elaboram as forças íntimas de nossa civilização”.
De que modo então explicar que o modelo brasileiro de desenvolvimento socioeconômico ainda hoje privilegie o urbano e o setor produtivista no campo, atribuindo estigma de atraso ao universo rural que escapa a esse modelo? O questionamento é pano de fundo desta quarta edição de FEIRA, que, após um longo hiato pandêmico, volta de forma exclusivamente digital (o papel ficou muito caro para uma revista independente, que resiste sem patrocínio ou publicidade).
A pandemia de Covid-19 atraiu nossos olhares para a intensificação de um movimento que a precede: uma expressiva onda de migração da cidade para o campo, que dá lastro a uma nova geração de produtores rurais. O processo que, ao longo dos últimos anos, tem levado jovens a abandonar grandes centros urbanos rumo ao campo aponta para a possibilidade de um novo olhar, mais profundo, menos preconceituoso para esse universo? Até que ponto essas novas gerações serão capazes de desconstruir o estigma que cerca o ambiente rural brasileiro? O recente recrudescimento do êxodo urbano que se testemunha no País teria, de fato, o poder de ressignificar o rural no imaginário brasileiro?
Não temos a pretensão de oferecer respostas para tantas perguntas. Tais questões foram tão somente uma espécie de bússola a nos conduzir nesta edição. Elas estão presentes direta ou indiretamente na entrevista que nos concedeu a nutricionista Elaine de Azevedo, sem dúvida uma das maiores pensadoras da alimentação no Brasil.
Indagações que foram também uma espécie de norte no diálogo estabelecido com novos migrantes que entrevistamos pelas estradas onde se embaralham São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais na reportagem construída a muitas mãos: nela contamos com a enriquecedora colaboração da própria Elaine de Azevedo e da jornalista Patrícia Moll, além das imagens de profunda sensibilidade registradas pelo fotógrafo Fellipe Abreu.
Tais reflexões não por acaso impregnam o inspirador trabalho do Estúdio Arado, misto de estúdio de design e instituto de pesquisa que se debruça sobre o imaginário rural brasileiro. Fomos ao encontro de Bruno Brito, sócio do Arado, para uma conversa em que se celebram possibilidades a se descortinar no campo sem deixar de jogar luz nos problemas latentes naquele ambiente.
E porque nos interessamos não apenas pelo movimento real de êxodo para o campo, mas também pelos caminhos que o conceito de rural percorre no imaginário dos moradores dos grandes centros urbanos, fomos conhecer o restaurante Lobozó, na Vila Madalena, em São Paulo. Ali, os sócios Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos evocam o universo da cozinha dos sítios, dando materialidade à pesquisa em que mergulharam em seu livro A culinária caipira da Paulistânia, a nos lembrar que há história e cultura na galinha caipira com que nos lambuzamos.