“O pão não existe na natureza, e somente os homens sabem fazê-lo, tendo elaborado uma sofisticada tecnologia que prevê (desde o cultivo do grão até a preparação do produto final) uma série de operações complexas, fruto de longas experiências e reflexões. Por isso, o pão simboliza a saída do estado bestial e a conquista da ‘civilização’.”
Com as palavras de Massimo Montanari apresentamos a terceira edição de FEIRA, dedicada a esse alimento que, como bem observou o historiador italiano, cumpre a função simbólica de distinguir a identidade das bestas da dos homens, capazes de construir artificialmente a própria comida, uma comida não existente na natureza.
A tecnologia de produção do pão, avanço revolucionário para nossa espécie, foi, ao longo do século passado, irresponsavelmente simplificada por atalhos criados pela grande indústria, com graves consequências. Esquecemos o processo vivo de fermentação que os egípcios teriam descoberto acidentalmente há milhares de anos. O pão que passamos a comprar em supermercados é um produto inteiramente diferente: o que antes tinha apenas três ingredientes pode, atualmente, chegar a quase trinta.
A quem interessa isso? É a pergunta que parece ecoar nas vozes de uma nova geração de padeiros que vem se multiplicando mundo afora, protagonistas de um movimento de revalorização do pão que, no Brasil, está apenas no começo.
A respeito desse assunto, conversamos longamente com o jornalista Luiz Américo Camargo, autor dos livros Pão Nosso e Direto ao Pão. Em entrevista concedida a FEIRA, ele faz uma análise da dinâmica dessa “redescoberta”.
Que contornos ganha esse movimento em terras brasileiras? Foi o que procuramos entender na extensa reportagem que ilustra esta edição e que nos levou a ouvir diversos profissionais de diferentes regiões do País.
Como falar de pão é falar de partilha, não haveria momento melhor para dar um passo que sempre desejamos: acolher no projeto de FEIRA mais vozes, novos olhares. Rachel Bonino radiografa a evolução histórica da atividade dos moinhos no Brasil e vislumbra o futuro que o mercado timidamente começa a ousar. Cíntia Bertolino se desloca da bolha do público consumidor de filões de fermentação natural e esquadrinha o consumo de pão no País por meio da dura régua da realidade. E, como há poucas ligas tão presentes e complementares na culinária global quanto pão e manteiga, Eduardo Tristão Girão, um dos maiores conhecedores da produção de lácteos no País, traz-nos o relato da visita a um talentoso e peculiar produtor em São Carlos, São Paulo. A história contada por Girão ganha profundidade nas imagens registradas pela fotógrafa Nani Rodrigues, dona de um olhar fecundo de brasilidade.
De volta nesta edição, José Pedro Fonseca, num exercício de técnica e imaginação, propõe sua receita de pão francês, uma abordagem artesanal e acessível ao pão mais consumido no País.
Visitamos ainda a micropizzaria Ferro e Farinha, no Rio de Janeiro, onde o nova-iorquino Sei Shiroma estabeleceu um divisor de águas no que se refere à qualidade da massa nas fornadas das pizzarias cariocas.
Além-mar, fomos conhecer a padaria lisboeta Gleba, cuja produção de pães de fermentação natural encontra alicerce na moagem própria de grãos exclusivamente portugueses.
Em entrevista concedida à jornalista Maria Canabal, em Paris, ouvimos Apollonia Poilâne, terceira geração de uma família de padeiros no comando da boulangerie que é um verdadeiro ícone da panificação francesa, cuja emblemática miche tem a força das coisas que resistem ao tempo e aos modismos.