TEXTO: RACHEL BONINO
FOTO: ANTÔNIO MORE / MOREPRESS

Águas passadas não movem moinhos

Em sua memória de criança, lá pelos anos 1960, Adilar Jorge Dallé guarda as cenas do vaivém em torno do moinho de pedra da família, no interior do Rio Grande do Sul. “As pessoas chegavam pela manhã de charrete, de mula, carregadas de sacos de grãos de trigo e de milho, e só à tarde conseguiam levar as farinhas de volta para casa. Fazia muita fila”, conta. O moinho era um local de produção, mas também de encontro e de convivência da comunidade local.

O Moinho Dallé foi inaugurado muito tempo antes da lembrança de Adilar – em 1919, na Vila Borghetto, na cidade de Anta Gorda (RS), onde está até hoje. Essa região, o Vale do Taquari, concentrou muitos outros moinhos gaúchos que aproveitavam os cursos dos rios locais para fazer girar as engrenagens de pedra que transformaram o estado no maior produtor de trigo daquele tempo. “Pra ter uma ideia, ao longo de uns 15 km do Arroio [riacho] Zeferino, chegou a ter cinco moinhos em operação”, conta Adilar. O trigo moído era cultivado nas proximidades, em cidades vizinhas, e gerava volume que abastecia o consumo local, das colônias de italianos, poloneses e alemães que desembarcaram no Sul no final do século XIX.

Os moinhos centenários construídos pelos primeiros imigrantes italianos no Sul, que ainda podem ser vistos em pé nas cidades de Anta Gorda, Arvorezinha, Ilópolis, Putinga e outras, parecem um retrato na parede. Muitos  estão fechados ou abandonados à espera de tombamento, e os que continuam abertos processam apenas fubá, com maquinário adaptado (as pedras continuam, mas agora são movidos à eletricidade). Sobrevivem da produção pequena e do turismo. Pararam no tempo após a grande expansão que marcou o setor moageiro nacional no começo do século XX.

FASE INDUSTRIAL

Foi nesse período que grandes moinhos de trigo foram criados no País, ainda capitaneados por imigrantes e investidores estrangeiros, mas com maior capacidade de produção e tecnologia industrial alinhada com a dos moinhos europeus. Entre os primeiros de maior porte estão os pioneiros Moinho Fluminense e Rio de Janeiro Flour Mills and Granaries Limited (ambos no RJ), seguidos por: Moinho Rio-Grandense (RS), que depois virou Moinho Porto Alegre, Moinho Matarazzo (SP), Moinho Santista (SP), Grandes Moinhos Gamba (SP), Moinho Boa Vista (SC) e Moinho Recife (PE).

Para fazer mover os cilindros de aço que processavam a farinha, os moinhos brasileiros se abasteciam de trigo importado: norte- americano, europeu, e, principalmente, de grãos sul-americanos, vindos do Uruguai e da Argentina. Foi nas décadas seguintes que o cultivo do cereal em terras brasileiras recebeu os maiores fomentos, especialmente nos governos de Getúlio Vargas, obstinado na busca pela autossuficiência do grão com sotaque nacional.

Se por um lado os campos nas regiões sudeste e sul do País passaram a registrar recordes nas colheitas, por outro, o trigo nacional não se aproximava em qualidade do trigo estrangeiro. E com o crescimento da diversificação de produtos da indústria alimentícia, os moinhos passaram a ser demandados na oferta de trigos específicos para a produção de biscoitos, de massas e de pães. Para burlar as rígidas regras impostas, simulavam comprar toda a cota de trigo nacional – chamado nesse contexto de “trigo-papel” –, para poder ter direito de adquirir o estrangeiro.

AUGE E ESTATIZAÇÃO

Os anos 1950 e 60 viram a maior expansão do setor moageiro em nossa história. As fábricas de farinha eram quase 500 (hoje, são cerca de 250, segundo a Abitrigo – Associação Brasileira da Indústria do Trigo). Muitos moinhos, mas pouco trigo nacional para abastecer todos eles.

Foi após 1964, com a chegada dos militares ao poder, que as regras estatizantes para a compra do trigo ficaram ainda mais duras. Com a assinatura do Decreto-Lei 210, de 1967, o comércio do cereal passou a ser monopólio do Estado. Apenas o Banco do Brasil poderia adquirir trigo nacional e repassar aos moinhos. O trigo estrangeiro seria comprado apenas para complementar o abastecimento nacional, se necessário.

REINVENÇÃO DO MERCADO

Foram 23 anos de mercado controlado pelo Estado. Em 1990, o decreto caiu, numa canetada do governo Collor, e, junto com ele, nos anos seguintes, caíram também muitos moinhos que não conseguiram se adequar à livre concorrência do mercado aberto. “O fim do decreto estimulou a concorrência e fez aumentar as demandas da indústria alimentícia”, destaca Divanildo Carvalho Junior, consultor da Trilhas do Trigo, com mais de 30 anos de atuação na cadeia produtiva do trigo. “Os moinhos que se acomodaram com o sistema estatal não conseguiram se recolocar no mercado”, observa.

Dos anos 1990 para cá, o número de fábricas diminuiu, mas teve sua capacidade de processamento aumentada: atualmente, 20% dos nossos moinhos abastecem mais de 50% do mercado interno. Aproximadamente 50% dessa farinha processada vai para a panificação, abastecendo as mais de 70 mil padarias brasileiras.

Apesar do peso importante na balança do consumo, a panificação nacional ainda passa por reveses: “O Brasil ainda tem problemas com a disponibilidade de trigo de boa qualidade e baixa capacitação de padeiros”, alerta o superintende executivo da Abitrigo Eduardo Assêncio. Ele lembra que, ao contrário do Canadá, por exemplo, que exporta trigos classificados de acordo com o seu uso na indústria alimentícia, a Argentina – que fornece cerca de 90% do trigo importado pelo Brasil – trata todo cereal como commodity. “Quanto maior a segregação de variedades de trigos, maior vai ser a oferta de farinhas para a indústria de alimentos e para o consumidor final”, pontua.

Um pensamento bastante diferente para o País, que, de 20 anos para cá, cresceu majoritariamente com mercado de farinhas processadas com trigo commodity e ajustado enzimaticamente após a moagem para correção de índices de proteína, por exemplo. É a famosa farinha do tipo mistura ou pré-mistura, usada por praticamente todas as padarias convencionais brasileiras, feita para ser manipulada por padeiros sem formação técnica, que ainda são a maioria nas brigadas. Como resultado, apenas pães macios de miolo branco. “Até 2005, o Brasil só tinha pão francês no mercado. Agora é que está despertando para as múltiplas possibilidades dos pães. O movimento ainda é singelo, mas já estamos nesse caminho inicial” pondera Assêncio.

PANIFICAÇÃO ARTESANAL

Timidamente, alguns moinhos têm se dedicado à busca de farinhas mais adequadas para o uso na panificação artesanal, apoiados em pesquisa de variedades de sementes, processamento correto e testes de produto final. O movimento de padeiros voltados para a produção de pães com fermentação natural, que vem ganhando força nas principais cidades brasileiras nos últimos cinco anos, tem estimulado essa nova fase moageira.

Um exemplo é a Biorgânica, empresa com selo orgânico, que há 12 anos processa cereais de mais de 140 produtores do sudoeste do Paraná (atualmente, o maior produtor de trigo do País) e que passou a fazer blends de grãos especificamente para atender à demanda trazida por padeiros e restaurantes que trabalham  com fermentação natural.

Já a Moageira Irati, também paranaense, lançou em outubro de 2019 o projeto Trigo de Origem. Após ouvir os pedidos dos padeiros artesanais do estado, trabalhou no desenvolvimento de uma variedade de trigo específica para o uso na fermentação natural. Batizada de Sossego, foi plantada em lotes de três triticultores parceiros. Do cereal colhido resulta uma farinha que absorve mais água e forma redes de glúten bastante resistentes ao tempo alongado de fermentação.

A moageira também atendeu à reclamação recorrente dos padeiros quanto à falta de informação sobre as farinhas: o QR code na embalagem do novo produto permite acessar características químicas, assim como a rastreabilidade do grão. “Até então, só a grande indústria alimentícia, as multinacionais, indicava ao moinho as características mais desejáveis da farinha que iria compor seus produtos. Agora, pequenos clientes, como os padeiros artesanais, também podem indicar o que querem”, afirma Marcelo Vosnika, diretor da Moageira Irati.

Embora almeje se posicionar na concorrência mundial de produtos com trigos selecionados, nosso setor moageiro ainda busca a própria identidade. Depois de anos de estagnação, apoiado num sistema fechado e de desafios controlados, agora ousa os primeiros passos no sentido de fortalecer o elo entre as pontas da cadeia: do produtor ao consumidor, do campo à padaria, do trigo ao bom pão.

Nesta edição
NOVO VELHO PÃO
Os novos caminhos da panificação artesanal no mundo e seus ecos no Brasil
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A propósito do novo livro de Apollonia Poilâne, uma breve entrevista com a padeira que é a terceira geração da família no comando de um ícone da panificação francesa
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Nossa opinião sobre a pizzaria do nova-iorquino Sei Shiroma no Rio de Janeiro
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A história por trás da padaria de Diogo Amorim em Lisboa