Texto: Constance Escobar
Fotos: Constance Escobar
Ilustrações: Arado
Uma pequena casa inundada pelo silêncio do vale e emoldurada pela silhueta da impressionante cadeia de montanhas da Serra da Mantiqueira. Impossível não lembrar as palavras que bailam na canção de Chico Buarque de Holanda: “é assim como se a rocha dilatada fosse uma concentração de tempos”. De certo modo, um diálogo entre tempos é o que se tece dentro da isolada casinhola.
Suas paredes estão cobertas de símbolos da cultura ancestral que habita aquelas paragens. Seus vãos são preenchidos pelo som da viola caipira que Bruno Brito dedilha na tarde em que me aproximo. Bruno é um dos idealizadores e sócios do estúdio Arado, cujo acervo institucional, desde 2020, encontra-se abrigado naquele cenário: a sede da Fazenda Santa Vitória, em Queluz, São Paulo.
O Arado não é somente um estúdio de design e projetos gráficos nem exclusivamente um instituto de pesquisa do imaginário rural brasileiro, mas, de certa forma, a confluência desses dois universos: um híbrido de projetos autorais e escoamento de pesquisas acadêmicas. Enquanto a maior parte da criação do estúdio fica sob o comando do artista gráfico Luiz Matuto, a frente institucional é conduzida por meu anfitrião, que, depois de passar dez anos na capital paulista, hoje vive em Queluz e leciona na Universidade do Vale do Paraíba.
“Eu venho de uma trajetória acadêmica em Artes e meu interesse sempre foi a cultura caipira, mais especificamente a cultura do Vale do Paraíba, que é minha terra natal. Começaram a surgir demandas gráficas de restaurantes, pequenos produtores e acabamos entrando no universo gastronômico, desenvolvendo ilustrações, mapas, projetos gráficos de maneira geral. Assim o estúdio se consolidou. Mas todos os envolvidos no Arado temos vínculos afetivos com o interior ou mesmo família na zona rural. Então não é só um aporte acadêmico, temos de fato essa vivência”, conta Bruno.
A abordagem do rural pelo estúdio, se não se conforma a uma idealização da natureza intocada, tampouco se submete ao viés da exploração. O propósito é o de exaltar o elemento humano presente nesse cenário, os elos da vida comunitária que nele se desenrolam – o ambiente rural visto como espaço povoado por pessoas e suas histórias. “O Arado busca uma visão transversal. Por exemplo, olhar para a agricultura pensando no festejo. Pensar o festejo buscando o viés da alimentação. E fazer isso com poesia, mas sempre tomando o cuidado de não romantizar porque são muitos os problemas latentes no campo. Um filtro de barro na quina de uma parede tem muito a nos dizer sobre arquitetura, religiosidade... Nossa abordagem não é exclusivamente acadêmica, não é exploratória no sentido de olhar como uma cultura pitoresca ou exótica, e não é puramente afetiva, embora também seja isso. O encontro dessas frentes nos dá um caminho editorial”, sintetiza.
A complexidade do universo sore o qual Brito e Matuto se debruçam propicia a pluralidade da abordagem. Muitos povoados de interior, se por um lado ficaram alijados dos caminhos percorridos pelos ciclos econômicos no Brasil, por outro tiveram nesse isolamento a possibilidade de manter importantes elos preservados: a vivência da roça, os modos tradicionais de vida, a rede de solidariedade da comunidade, as tradições das festas, da cultura local. Iniciativas como a do Arado podem fortalecer esses elos, jogar luz nesses símbolos, permitindo que saiam do isolamento e ganhem relevância.
“Sinto que o Arado dialoga com a arte. Assim como a pintura sacraliza algo, quando abordamos um elemento, nós o transformamos numa narrativa ou numa imagem. O pilão, por exemplo, deixa de ser só um objeto utilitário e passa a ocupar esse lugar de encontros e desencontros da cultura. O café coado tem muito mais de arquitetura do que de culinária, afinal o cheiro do café ativa o espaço vazio da casa. Uma gamela, um monjolo têm significados para além do seu uso. Acho que é isso o que o estúdio busca: colocar os objetos e as manifestações numa espécie de lugar sacralizado. Mas a ideia não é pintar de ouro o pilão! É mostrar que há beleza na função mais primária das coisas, encontrar elementos que estão adormecidos no imaginário das pessoas e que tenham potencial de reingressar no seu cotidiano”, contempla Bruno.
NOVO RURAL
No rastro da pandemia de Covid-19, o movimento de busca pela vida no campo, pela proximidade com a natureza propiciou o surgimento de muitos novos projetos na área da hospitalidade voltados para esse universo. Ao dialogar com algumas dessas iniciativas, o estúdio é pautado pela preocupação em conduzir isso com autenticidade e sem cair na armadilha da glamurização.
“Tenho um olhar de preocupação para o fenômeno do êxodo urbano mesmo antes da pandemia. Eu me mudei para São Paulo e fiquei refém da cidade, não conseguia sair de lá. Via as pessoas comprando muitas terras no Vale do Paraíba, na Serra da Mantiqueira, descobrindo que esses lugares existem. Isso começou a me angustiar. A gente começa a tropeçar com frequência naquele jargão: ‘publicitário larga tudo para plantar cafés especiais’. Por um lado, é bom porque as pessoas trazem seu repertório, sua vivência, suas habilidades, que podem ajudar a zona rural. Por outro lado, isso gera especulação imobiliária e uma série de outros problemas. Há o risco de esses personagens ganharem mais protagonismo do que as pessoas locais, que estão ali produzindo há gerações”, pondera Bruno, que tem priorizado projetos com interesse genuíno no lugar onde se inserem e que assumam compromisso com o desenvolvimento regional.
“Esse foi um dos motivos de querer que o Arado se firmasse como centro de pesquisa, é importante para nós que o Arado seja um ponto de referência do que é a cultura caipira. Se a pessoa tem recursos para dar passos mais largos, que tenha a possibilidade de fazer isso se apropriando de elementos, linguajares, símbolos com dignidade e respeito. Queremos dar um recado mesmo: ‘cara, vai com calma porque tem muita coisa pra você entender antes de começar a usar a bandeira da roça pra mesa – ou, pior, acabar dizendo isso em inglês’”, dispara.
No esteio dessa preocupação, brota um dos projetos mais ambiciosos do estúdio: uma Enciclopédia Rural Brasileira, bastante mais ambiciosa do que um mero compilado de verbetes descritivos. “Esse talvez seja o grande projeto do Arado. Já tenho um protótipo, é um ‘monstro’ que estou criando. A ideia é fazer uma grande enciclopédia ilustrada, com referências bibliográficas e uma visão um pouco mais profunda e crítica dos elementos. Haverá alguns eixos temáticos: ofícios, arquitetura, alimentação, agricultura. Vamos precisar de muitos braços, e também de financiamento para que possa acontecer. Mas acho que essa pode ser nossa grande obra.”