TEXTO: MARIA CANABAL
ILUSTRAÇÃO: HEITOR MENEZES

Bacalhau, o rei

DIAS DE ABSTINÊNCIA

Geralmente admitimos que cada um come de acordo com seu país de origem. Conversem, por exemplo, com hoteleiros. Eles dirão que os franceses esvaziam as bandejas de croissants e bolos no bufê do café da manhã, enquanto os nórdicos acabam com todos os ovos, queijos e embutidos.

Já eu sempre defendi que as pessoas não comem em função de seu país de origem, mas de sua  religião. Para defender esta tese, sempretomo o bacalhau como exemplo.

Todos sabem que Portugal, Espanha e Itália estão entre os maiores consumidores no mundo. No entanto, sabem que o México é igualmente um grande consumidor, assim como o Brasil, outros países da América Latina e muitos países da África e da Ásia?

Alguns argumentarão que é normal, que os países da América Latina ou da África consomem bacalhau por uma herança de seus colonizadores europeus. E acertarão em cheio. Outro motivo dado é que o bacalhau, por ser muito nutritivoe barato, tornou-se alimento destinado a escravos recém-chegados da África.

Mas por que países colonizadores, como Portugal, Espanha e Itália, o consomem, se, em suas águas, nunca houve bacalhau?

É aqui que a religião entra em cena. Por volta de 1509, o Papa Júlio II ordenou que 160 dias do ano fossem consagrados à abstinência da carne (91 dias em 1933). Os mais abastados compravam dispensas que lhes permitiam consumir carne, ovos e manter relações sexuais. Mas a grande maioria da população não podia comprar as famosas indulgências – um escorregão ético que deu origem ao protestantismo. Com isso, foi necessária uma enorme quantidade de peixes para alimentar uma população europeia
cada vez mais numerosa.

Os maiores pescadores de bacalhau foram os vikings e os bascos, que não apenas o pescaram no Atlântico Norte, na Noruega, nas Ilhas Faroé e na Islândia, mas chegaram até mesmo a Terra Nova no século XVI. A razão de o arquipélago São Pedro e Miquelão (território francês) ter recebido esse nome e uma pequena ikurriña (bandeira basca) em sua bandeira tem origem na história da pesca do bacalhau. Há mais de quatro séculos, ele é a base da economia de seus habitantes.

BACALHAU OU STOCKFISCH?

Bacalhau e stockfisch nada mais são que técnicas de conservação diferentes para a mesma espécie, o Gadus morhua. Lembremos que os pobres raramente tinham o luxo do pescado fresco.

O stockfisch, termo de origem alemã, traduzido na Itália como stoccafisso, é composto pela palavra stock (barra) e fisch (peixe) e refere-se à técnica em que este era suspenso em varais de madeira para secagem. Trata-se de um processo de conservação muito simples e barato.

Desde a época de Carlos Magno, existem documentos que descrevem a secagem do peixe no Mar do Norte. Este foi um alimento básico na Islândia durante séculos, a ponto de ter sido descrito como o equivalente local do pão. A partir de 1560, aparecem registros indicando a introdução do stockfisch em lugares como Sicília, Calábria, Nápoles, Gênova, Veneza e Croácia.

A técnica consiste em limpá-lo escrupulosamente após a pesca. Não deve ficar sequer um traço de sangue ou víscera. Sem cabeça e sem espinha dorsal, o peixe é pendurado  pela cauda em gigantescos varais de madeira (hjell) que formam impressionantes pirâmides acinzentadas.

Após permanecer secando ao ar livre de fevereiro a maio, quando o tempo é frio  e seco no norte da Noruega, sobretudo nas Ilhas Lofoten, onde o clima é especialmente propício, o pescado passa pelo período de três meses de maturação em caixas de secagem
com ventilação perfeita.

As Ilhas Lofoten, membro da Liga Hanseática desde o século XIII, comercializavam peles, tecidos e stockfisch, com fábricas em Gênova e Veneza, via Lisboa.

O bacalhau, obtido pela técnica de salga e posterior secagem, não foi viável até o século XVII, quando as nações marítimas do norte da Europa passaram a ter acesso ao sal barato proveniente de países do sul. Sua conservação é mais longa que a do stockfisch, chegando facilmente a um ano.

As águas das Ilhas Faroé são afetadas por duas correntezas — uma morna na superfície (extensão do gulfstream) e outra fria nas profundezas (do Mar da Noruega) —, que se mesclam de maneira a torná-las ricas em nutrientes que atraem os peixes. Uma característica muito peculiar é que a temperatura não oscila durante o ano.

O estoque de bacalhau nestas ilhas é mítico e capaz de causar palpitações nos gourmets bascos cada vez que seu nome é pronunciado. Embora seja bastante pequeno, apenas 20 km2, é o habitat de uma espécie endêmica, com nadadeiras adicionais e muito maior que o bacalhau tradicional. Alimentando-se em ambiente quase intocado, o bacalhau de Faroé é considerado um dos melhores do mundo e recebe a classificação tipo 1 entre 30 tipos de qualidades existentes.

APENAS HISTÓRIA?

O Gadus morhua é um peixe bonito, com manchas âmbar, como as de um leopardo, sobre um lombo verde-oliva. Seu ventre é branco e exibe uma longa listra fusiforme na lateral.

A carne do bacalhau mal contém gordura (0,3%) e é composta por mais de 18% de proteínas, uma porcentagem insolitamente elevada para um peixe. Dele nada se desperdiça. A cabeça é mais saborosa que o corpo, especialmente as bochechas e a garganta, que os bascos chamam de kokotxas. Como muitos outros pescados, antes reservado para as classes mais humildes, o bacalhau virou um dos novos top models da alta cozinha.

É uma mercadoria de valor mundial. Em países como a Noruega, sua importância é equivalente à do gás natural ou do petróleo.

Mas ele está em risco de extinção.

Os estoques perderam 90% de seu tamanho desde os anos 1960, em decorrência de níveis não sustentáveis de pesca.

A continuidade de pescas dirigidas e capturas acidentais, somadas a grandes mudanças na cadeia alimentar em algumas regiões, reduziram significativamente a capacidade de recuperação da reserva de bacalhau no mundo. Desde 2001, especialistas da União Europeia clamam pela proibição completa da pesca no Atlântico Norte.

A voracidade humana, seja em razão da gastronomia, por sobrevivência ou por capricho, colocou em risco a existência desse peixe tão especial.

Dias de abstinência?

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