TEXTO: CONSTANCE ESCOBAR
FOTOS: SAMUEL ANTONINI

Ferro e Farinha

“Pizza é pão.” Jamais esqueci a frase que ouvi de um dono de pizzaria muitos anos atrás, numa época em que o Rio de Janeiro ainda não sonhava com bom pão nem com boa pizza.

Se hoje é possível identificar com alguma clareza os atores responsáveis pela notável evolução da panificação na cidade nos últimos anos, eu diria que é igualmente claro o protagonismo na mudança de rumo em relação à qualidade de suas pizzarias.

Era janeiro de 2015 quando entrei pela primeira vez na Ferro e Farinha, à época pouco (ou nada) conhecida. No primeiro mês de vida da casa, que se resumia a um pequeno balcão e algumas mesas com bancos de plástico na calçada, a estrutura era improvisada, o ar-condicionado não dava conta do calor inclemente que o verão nos impingia, mas na primeira fatia entendi que aquele lugar seria um divisor de águas na forma como o carioca consumiria pizza.

Naquele ano, a casa arrebataria o prêmio Comer e Beber da revista Veja em sua categoria. Por mais que me pareça questionável a real importância de quaisquer prêmios de gastronomia, aquele, além de merecido, representava um feito se considerarmos que se tratava de um estabelecimento que se firmava com poucos recursos, sem investimento significativo. É que, embora o investimento fosse baixo, a aposta era alta: o nova-iorquino Sei Shiroma arriscava fazer diferença no provinciano universo das pizzarias cariocas. A começar pelo conceito do lugar: mais um bar de pizzas do que propriamente uma pizzaria.

Na verdade, Sei já ensaiava esse movimento antes mesmo de ter um ponto fixo: no começo de sua temporada na cidade, ele circulava com um forno montado em um caminhão, uma espécie de pizzaria itinerante. 2015 foi o ano em que migrou do caminhão para o diminuto espaço no Catete. Quatro anos depois, a pequena loja tornou-se mais confortável após passar por pequena reforma e ganhou filial no Leblon – mais ampla, mais ambiciosa no investimento, porém sem a alma da matriz (ainda que a qualidade do que se serve seja a mesma).

Sem o excesso de queijo que costuma agradar parte do público carioca, as coberturas das pizzas da Ferro e Farinha são saborosas e equilibradas, sempre pautadas por diálogos fluentes (mesmo quando aparentemente improváveis) entre osingredientes. É o que se vê tanto na simplicidade  da clássica Domenico, que reúne molho de tomate, fior di latte, grana padano e manjericão, como na ousadia da Adobo Verde, em que o amargor da couve marinada em shoyu e gengibre contracena com a doçura do mel e com o alho confitado – a propósito, é a favorita desta escriba, e aparentemente tem também a predileção de Sei, por ser uma espécie de homenagem à sua infância, uma evocação dos dumplings feitos pela mãe, recheados com verdura, shoyu e gengibre.

Quanto à massa, apesar de não mais ser feita exclusivamente com levain (usa-se pequena porcentagem de pré-fermento, o que os italianos chamam de biga e os americanos, de poolish), as bordas leves e crocantes, de boa digestibilidade, denunciam a prática da longa fermentação. Foi preciso que um nova-iorquino  emigrasse do Brooklyn para que os cariocas finalmente entendessem que pizza também é pão – bom pão, espera-se.

Desde então, o Rio de Janeiro felizmente vem testemunhando o surgimento de novos endereços empenhados em fazer bons discos a partir de longas fermentações. Mas a pizza que me chamou atenção naquele janeiro de 2015, muito possivelmente, ainda é a melhor da cidade.

 

FERRO E FARINHA
Rua Dias Ferreira 48 - Leblon
Rio de Janeiro

Nesta edição
PONTO DE VISTA: LUIZ AMÉRICO
Em entrevista, o jornalista Luiz Américo Camargo faz uma análise lúcida e profunda do atual cenário da panificação no Brasil
FORA DA BOLHA
O consumo de pão no Brasil que não conhece o levain.
GLEBA
A história por trás da padaria de Diogo Amorim em Lisboa
NOVO VELHO PÃO
Os novos caminhos da panificação artesanal no mundo e seus ecos no Brasil