TEXTO: CÍNTIA BERTOLINO
FOTO: GUI CERQUEDA

Fora da Bolha

No cartaz amarfanhado colado à parede de uma padaria na região da Vila Madalena, zona oeste da capital paulista, lia-se: “O Sindicato daIndústria de Panificação e Confeitaria de São Paulo adverte sobre o perigo de consumir pão produzido clandestinamente, que você não conhece a procedência nem como é produzido. Compre o pão na padaria de sua confiança e proteja sua saúde e de sua família”. O cartaz chama a atenção pelo tom alarmista do texto, quase uma ameaça. A forma da mensagem, e o conteúdo meio criptográfico, soa tão fora de lugar aos clientes mais atentos quanto aos desatentos.

A diferença é que os mais atentos poderiam questionar como, afinal, o pão que há milhares de anos pertencia à esfera doméstica foi apropriado de tal forma pela indústria que a produção amadora, caseira, tenha se tornado uma ameaça letal. Embora existissem padarias na Roma Antiga, a produção em escala industrial surgiu apenas nas primeiras décadas dos anos 1900. Ou seja, ontem.

Na falta de informações mais precisas, pareceu plausível a hipótese de que a mensagem no cartaz, talvez, mirasse a existência e o crescimento dos padeiros amadores dedicados à produção de pães de fermentação natural. Essa última desconfiança acabou por ganhar a simpatia, e com uma grande parcela de wishfulthinking, tornou-se a possibilidade favorita para interpretar o pôster em questão. Ele seria, afinal, uma prova inconteste de que o fortalecimento dos pães artesanais estava crescendo e incomodando, a exemplo da pequena revolução das cervejarias artesanais iniciada há alguns anos.

Um telefonema para o Sindicato da Indústria de Panificação e Confeitaria de São Paulo (Sindipan), responsável pelo cartaz e pela campanha “Pão é energia, pão é na padaria!”, foi suficiente para desidratar por completo essa teoria. Não, os pães artesanais não se tornaram tão populares a ponto de fazer soar o alarme da indústria. O alvo da campanha era outro: a produção e o comércio clandestino de pães franceses e outros itens panificados na periferia dos grandes centros urbanos. “Na cidade de São Paulo, a produção de pães ilegais – feitos com eletricidade roubada, água de poço, sem condições adequadas de preparo – tem crescido. O objetivo da campanha é conscientizar a população sobre os perigos para a saúde e a concorrência desleal que o comércio clandestino promove”, diz Rui Gonçalves, vice-presidente do Sindipan.

Totalmente à margem da bolha de quem vive insulado por filões produzidos com tempo, farinha de trigo orgânica e leveduras com pedigree, a realidade, quando bate, tende a ser implacável com hipóteses utópicas.

Por ora, a indústria tem prioridades mais urgentes. Além da preocupação com a saúde pública, explicitada no cartaz, o propósito é também coibir o comércio ilegal, que, em algumas regiões de São Paulo, chega a abocanhar quase 20% do mercado.

Não são números desprezíveis. Especialmente quando se trata do pão mais consumido no País. No dia a dia da maioria dos brasileiros, ele é o pão possível, a própria definição do que é reconhecido como tal. É, de longe, o produto mais popular, responsável por 45% de tudo o que é vendido nas mais de 70 mil padarias representadas pela Associação Brasileira da Indústria de Panificação e Confeitaria (ABIP).

DA COZINHA DE CASA À PADARIA

O desenvolvimento de técnicas industriais na panificação, além de outros métodos de processamento e conservação de alimentos, atendeu ao chamado dos grandes centros urbanos, cujo desafio era pôr comida na mesa de mais pessoas entre o final do século XIX e o início do século XX. A produção industrial de um produto tão identificado com a vida doméstica, fundamental na dieta de tanta gente – até hoje é o item mais consumido no mundo todo –, ajudou a baratear e expandir enormemente o acesso a pães nas camadas mais miseráveis da população ao redor do mundo. No capítulo “A Indústria Alimentar e as Novas Técnicas de Conservação”, parte do livro História da Alimentação, organizado por Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, o pesquisador Giorgio Pedrocco fala sobre isso: “Em razão de seu papel fundamental na alimentação, a panificação é uma das primeiras atividades artesanais a conhecer tentativas de mecanização que se aplicam tanto na fase da amassadura, a mais penosa, quanto na fase do cozimento, outro gargalo de estrangulamento no âmbito do ciclo produtivo”.

O avanço da panificação nas primeiras décadas do século 20, traz consigo a substituição das longas horas dedicadas à fermentação gradual por um processo de fermentação quase instantâneo. É justamente nesse período que os brasileiros começam a produzir e consumir o pão francês. Ninguém sabe ao certo como a receita nasceu. A história mais contada remete ao desejo dos cidadãos mais abastados, que viajavam frequentemente à Europa, de ter à mesa filões similares aos que comiam na França – um pão de casca dourada e crocante, versão reduzida de uma baguete.

Mas o que teria motivado tamanho sucesso do pãozinho francês? “Não saberia cravar uma resposta para essa pergunta, mas acredito que o conjunto da obra pode ajudar na explicação.

Características importantes são o preço e a disponibilidade – em qualquer padaria do Brasil você sempre encontra pão francês”, diz José Batista de Oliveira, presidente da ABIP.

Grosso modo, a preparação do pão francês levaria farinha de trigo (e melhoradores de farinha), água, sal, açúcar e gordura. Nos endereços que ainda não tomaram o atalho de assar pães que recebem congelados, abrindo mão de conduzir o processo de amassar e modelar, a operação seria mais ou menos a mesma.  Misturados todos os ingredientes, a massa descansaria por mais de uma hora até ser disposta na enroladeira, responsável pelo formato conhecido. Seria, então, levada a uma câmara com temperatura controlada para crescer de três a quatro horas. Finalizada essa etapa, 15 minutos no forno seriam suficientes. E, voilà, os pães estariam prontos para a venda.

Num esforço para criar uma padronização, em 2013 foi publicada a norma técnica ABNT NBR 16170 que dispõe sobre as qualidades desejadas para o pão francês. Um pãozinho dentro dos padrões regulados deve ter cerca de 14 cm de comprimento por 7 cm de largura. A norma técnica também avalia a cor da crosta (que deve ser amarelo-dourada); a pestana (um único corte é recomendável); a crocância; a simetria; a integridade e, por fim, o aspecto geral.

A vida útil é estimada em quatro horas. Passado esse tempo, começa a murchar e a ressecar. Durante muito tempo, atribuiu-se o limitado prazo de validade do pãozinho à exigência dos consumidores de ter sempre à disposição o produto recém-saído do forno. Contudo, a própria composição e o método de preparo da receita nasceram para consumo imediato. Mudar essa dinâmica implica transformar o pão francês em um outro produto, possivelmente bem diferente do que se conhece hoje – o que, com o perdão dos puristas, talvez não fosse algo necessariamente ruim.

Pela quantidade de padarias espalhadas pelo País, e pelo carinho que os brasileiros têm por elas, era de se supor um alto consumo de pão.

Novamente a observação, baseada na experiência empírica, não conversa com a realidade. O consumo anual de pão no Brasil atinge pouco mais da metade dos 60 kg per capita recomendados pela Organização Mundial da Saúde.

Na falta de dados e pesquisas que expliquem o consumo relativamente baixo, palpites não faltam. Eis alguns deles: o consumo de outros tipos de carboidratos, com destaque para os derivados da mandioca, como a tapioca; e o próprio hábito do brasileiro, que não costuma consumir pão em todas as refeições,  diferentemente do que fazem os franceses, italianos e, no continente, nossos vizinhos chilenos.

Fator preponderante para o consumo abaixo do recomendado é a desigualdade social nas regiões mais pobres e nas periferias das grandes cidades. Desigualdade que em sua face mais extrema é marcada pela fome e, portanto, ainda mais perniciosa do que aquela que fomenta padarias clandestinas nas periferias dos  grandes centros urbanos, permeados por “desertos alimentares” – comunidades inteiras desprovidas de acesso a alimentos frescos, onde o que chega são apenas produtos ultraprocessados.

Diante desse cenário, traz ao mesmo tempo alento e desalento pensar no crescimento do mercado para os pães de fermentação natural. O pão, a própria representação do que é a civilização, o símbolo máximo da alimentação humana, também pode ser tomado como um indicativo da extrema desigualdade brasileira. No momento em que o Brasil caminha para voltar ao Mapa da Fome da ONU, e à luz de dados e estatísticas que demonstram o escândalo da distribuição de renda no País, o abismo alimentar que nos separa segue imenso.

Nesta edição
GLEBA
A história por trás da padaria de Diogo Amorim em Lisboa
POILÂNE
A propósito do novo livro de Apollonia Poilâne, uma breve entrevista com a padeira que é a terceira geração da família no comando de um ícone da panificação francesa
UM PÃO BEM QUENTE COM MANTEIGA À BEÇA
A produção artesanal de manteiga fermentada da Caseirinho
PONTO DE VISTA: LUIZ AMÉRICO
Em entrevista, o jornalista Luiz Américo Camargo faz uma análise lúcida e profunda do atual cenário da panificação no Brasil