TEXTO: CONSTANCE ESCOBAR E THIAGO NASSER
FOTOS: SAMUEL ANTONINI

Fora da lata

Embora tenha apreciadores mundo afora, no Brasil a sardinha enlatada é subestimada. Parece ser ainda rotulada como fonte rápida, barata e conveniente de calorias e proteínas, ideal para estudantes com muita pressa e pouca habilidade na cozinha ou para famílias com
orçamentos apertados. As benesses prometidas pelos ácidos graxos ômega-3 eventualmente lhe garantem mais alguns consumidores. Mas, de modo geral, a ela não se atribui grande valor: o uso culinário não costuma ir além do tradicional cuscuz-paulista.

Para FEIRA, mais importante que o apelo econômico ou nutricional do produto é ponderar se, bem feito ou bem aproveitado, ele poderia ser apreciado no mesmo patamar gastronômico de um peixe fresco.

Com esse enfoque, organizamos uma degustação que reuniu quatro avaliadores para uma informal troca de ideias a respeito do que experimentamos – sem fichas técnicas nem atribuição de notas. Além dos idealizadores da revista, participaram o chef Rafa Costa e Silva (do restaurante Lasai, em Botafogo) e Sacha Mollaret, sócio do Marchezinho (misto de café, bistrô e mercearia, também em Botafogo).

Selecionamos marcas brasileiras e portuguesas que pudessem ser facilmente encontradas nos mercados em diferentes bairros da cidade: 88, Gomes da Costa, Pescador e Coqueiro (brasileiras), além de Ramirez e Cofisa (portuguesas).

Como calhou de o encontro ocorrer logo após o fim do período de defeso da sardinha, Rafa resolveu incrementar a degustação, levando algumas conservas que vinha testando com os 50 quilos de peixe que havia recebido dias antes em seu restaurante. “É a primeira vez que faço conserva de sardinhas. Essas vieram de Cabo Frio, chegaram logo depois do defeso. Testei com e sem película, fiz algumas só com sal e erva, e outras com vinagre de caqui e funcho”, conta o chef.

Embora sardinhas enlatadas sejam um tipo de conserva, sabíamos de antemão que a competição seria desleal. Ainda assim, incorporamos os exemplares com nobre objetivo: avaliar o contraste entre o produto artesanal e o industrial.

VEREDITO

As sardinhas enlatadas brasileiras, de modo geral, deixaram a desejar em todos os quesitos: a carne esfarelava ao primeiro toque do garfo, o sabor não era marcante, e a limpeza dos peixes evidenciava desleixo (Gomes da Costa e 88 apresentavam muitas escamas, e vísceras comprometeram o sabor das sardinhas Coqueiro).

Passamos às portuguesas. Os dois cozinheiros presentes concordaram que Cofisa não era muito superior às brasileiras. Já na marca Ramirez a superioridade pareceu incontestável. No toque, a textura se revelava diferente, mantendo-se a integridade da carne. “Nessa a gente pode sentir o prazer do filé de peixe”, comentou Sacha. Rafa, com o rigor que lhe é peculiar, foi mais econômico: “Essa dá pra comer”.

Seguimos, então, com a prova de suas conservas artesanais. Era também a primeira vez que Rafa as experimentava. Não havia como negar: era outro produto, impossível compará-las às industrializadas. A textura da carne era perfeita. Quanto ao sabor, concordamos que as sardinhas feitas apenas com sal e ervas ainda precisavam de ajuste – estavam muito salgadas. Entre as duas conservas em vinagre de caqui, foi unânime a preferência por aquela feita com os peixes sem película, curtidos por oito dias.

Era forçoso concluir que o aproveitamento das sardinhas enlatadas brasileiras não é tão simples. Não basta abrir e devorá-las com pão — ou com saltines, como propôs Gabrielle Hamilton, com certo atrevimento, no restaurante Prune, em Nova Iorque. Para ter o prazer de degustá-las com essa simplicidade, há duas saídas: investir em boa marca ou elaborar artesanalmente sua própria conserva. Compartilhamos aqui o modo de fazer observado por Rafa em seus testes, caso você queira reproduzir.

Se, como produto, o uso das conservas industrializadas brasileiras não seria recomendável, é factível seu emprego comoingrediente em alguma preparação culinária,  como a pissaladière. Trata-se de receita típica do sul da França, em que uma massa assemelhada à da pizza é coberta por pasta de anchovas, juntamente com cebolas caramelizadas.

Sabendo que um de nossos avaliadores, Sacha Mollaret, é natural de Nice, propusemos a ele executar a receita usando sardinha enlatada no lugar de anchovas. A sugestão foi aceita, e o resultado não decepcionou.

Nesta edição
CHÂTEAU RICHEUX
A cozinha corsária de Olivier Roellinger
RIO DE COSTAS PRO MAR
A cadeia do peixe no Rio de Janeiro
BACALHAU, O REI
Uma perspectiva histórica do consumo do peixe que é predileção mundial
OTEQUE
Nossa opinião sobre o novo restaurante de Alberto Landgraf