Texto: Constance Escobar
Fotos: Samuel Antonini

LOBOZÓ

“Quando se sentam à mesa, os paulistanos imaginam que estão em outro canto qualquer, nunca em São Paulo.” A frase cunhada por Carlos Alberto Dória no prefácio de A culinária caipira da Paulistânia, livro escrito em coautoria com o chef Marcelo Corrêa Bastos, diz muito sobre as desconexões que testemunhamos no cenário da restauração nas grandes cidades brasileiras.

Abundam salões e cardápios despidos de qualquer relação com a paisagem cultural que os cerca, bem como cozinhas devotadas a uma espécie peculiar de religião: o culto ao produto – uma quase sacralização do ingrediente, que encerraria em si todos os atributos culinários, quase como se pudesse existir fora de um contexto. A desconexão de tantos restaurantes em relação aos territórios que habitam é, em certa medida, parente da cisão que se produziu no Brasil entre o urbano e o rural, fruto de um modelo de desenvolvimento econômico que sempre privilegiou os centros urbanos em detrimento do campo.

Contra essas incoerências, ergue-se o pensamento de Dória e Bastos na obra escrita a quatro mãos, que acabou por transbordar suas próprias páginas. A dupla gestou mais que um livro: deu à luz um restaurante, o Lobozó, sediado na Vila Madalena, na capital paulista. Em comum, ambos os projetos derivam de uma pesquisa de fôlego sobre a culinária caipira da região a que os autores se referem como Paulistânia, faixa territorial que abrange o que hoje conhecemos como São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, parte do Rio de Janeiro e Espírito Santo.

Embora o termo “caipira” não se restrinja ao universo rural, dialoga profundamente com ele. Não por acaso, o cardápio do Lobozó é arquitetado em torno do que Dória define como a cozinha dos sítios. O sítio, diferentemente das fazendas, que têm acesso recorrente às cidades, é uma unidade autossuficientes de produção, lugar onde “ao mesmo tempo em que se materializam as relações sociais mais gerais, o homem interage diretamente com o ambiente, conformando-o ao ideal de vida possível”.

Guardadas as diferenciações no amplo espaço da Paulistânia, milho, feijão, galinha e porco são elementos centrais na cozinha do sítio, entrosando-se com o que quer que se cultive na horta e no pomar. Tais elementos são, portanto, basilares na concepção do cardápio do Lobozó. “O sítio é avesso à pecuária. A comida do camponês é o porco porque ele dá proteína numa dimensão que a comunidade pode absorver. Um boi já exige uma vila, uma cidadezinha, porque é muito grande. A economia caipira é essa que se faz em torno do porco, da galinha”, observa Bastos ao refletir sobre o porquê do protagonismo destes ingredientes no cardápio idealizado por ele e por Dória.

O porco surge num suculento rolê com couro pururuca. Está também na linguiça amalgamada com farinha de milho aos vegetais da temporada, no prato que traduz e batiza o restaurante. A superlativa farinha de milho da fecularia Nossa Senhora das Brotas figura também nos cuscuzes, pratos emblemáticos da Paulistânia. Outra estrela do cardápio é a galinha caipira assada na televisão de cachorro – uma das poucas concessões à teatralidade na atmosfera do restaurante.

 

A dupla se recusa a enxergar o ambiente rural como mero repositório de matéria-prima. Entendem-no, antes, como fonte de cultura, mas sem dogmatismo. “Jamais cogitei, por exemplo, ostentar um fogão a lenha. Queríamos a identidade caipira, mas não queríamos um espaço cenográfico. O Lobozó vem para deixar claro que essa cultura que também é rural não precisa ficar aprisionada nesse contexto”, dispara Dória. “Muita gente pergunta pelo pilão, por exemplo... Nossa cozinha não tem pilão, a paçoca que servimos com doce de leite é feita na Thermomix. É paçoca caipira feita com tecnologia alemã”, brinca Bastos.

A paçoca em questão, feita à base de farinha de milho e amendoim, é receita que tem morada nas lembranças de infância de Dória. “Minha mãe fazia uma lata grande e toda tarde me dava um pouquinho com banana amassada. No Lobozó, o Marcelo alterou o açúcar, substituiu o branco pelo mascavo, e passou a fazer o preparo na Thermomix. Afinal, o que o pilão acrescentaria? Isso é uma fantasia de alguns clientes, que indagam se a paçoca é pilada. Ora, por trás do pilão estava a mão escrava, não é mesmo? Não vejo graça em pagar tributo a isso”, sentencia.

Nessa toada, a dupla se dispõe a deglutir e digerir a cultura caipira sem jamais opor tradição e evolução.  Seu tempo é hoje.

 

Lobozó
Rua Medeiros de Albuquerque 436 – Vila Madalena – São Paulo

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