TEXTO: CONSTANCE ESCOBAR
COLABORAÇÃO: THIAGO NASSER
FOTO DE ABERTURA: ROBERTO SEBA

Novo Velho Pão

Em 1932, ao inaugurar em Paris a padaria que se tornaria um ícone da panificação francesa, Pierre Poilâne não queria fazer baguetes como seus pares, mas voltar ao pão de sua infância, que havia caído em desuso após a Primeira Guerra Mundial. Com grandes dimensões e crosta rústica, miolo de sabor profundo e leve acidez proporcionada pela fermentação natural, era concebido como esteio de uma refeição. Mais de cinquenta anos depois, a imagem desse mesmo pão evocada em uma tela francesa do século XIX conduziria o americano Chad Robertson a um processo de produção solitário e obstinado, que faria dele possivelmente o mais cultuado padeiro da atualidade. Seu livro Tartine Bread, publicado em 2010, influenciaria toda uma nova geração de padeiros que hoje atua mundo afora.

Em diferentes momentos, ambos ousaram dar novo significado a um pão que tem suas raízes em tempos imemoriais, recuperando e atualizando modos de fazer soterrados nas engrenagens do progresso. O sistema que, ao longo do século passado, nos levou de farinhas integrais moídas em mós de pedra à farinha branca produzida em larga escala em grandes moinhos industriais, que substituiu o fermento natural pelo fermento comercial, que nos conduziu de pães longamente fermentados a filões sem sabor, sem valor nutritivo e sem alma, além de empobrecer a panificação, solapou também nossa memória: esquecemos os motivos pelos quais a produção se dava de maneira mais lenta, complexa, minuciosa.

O atual movimento de revalorização que acontece em modernas padarias em muitos países nada mais é do que um retorno à maneira como o pão era feito há alguns milhares de anos: com fermentação longa e natural, a partir de uma cultura de bactérias e leveduras selvagens – um processo vivo, que não se submete a controle rigoroso, mas sem o qual não se pode acessar e digerir os nutrientes contidos no núcleo de um grão de trigo. É compreensível o entusiasmo, o arrebatamento com que os padeiros da nova geração se engajam nessa marcha. Como observa Vanessa Kimbell na obra The Sourdough School, embora o pão seja parte da nossa história desde o Neolítico, “jamais houve momento mais excitante para panificar, uma vez que o renascimento de técnicas antigas de moagem, a microbiologia moderna e o processo de fermentação natural se encontram, permitindo-nos entender e assar o pão mais delicioso e nutritivo possível”.

SOURDOUGH NA TERRA DO PÃO FRANCÊS

Cedo ou tarde, essa onda haveria de chegar ao Brasil. O avanço que temos testemunhado aqui pode parecer lento, mas é considerável quando mensurado na régua da história. Não podemos nos esquecer de que até a década de 1990 não havia preocupação com a qualidade do trigo produzido para panificação, uma vez que toda a produção era comercializada pelo Estado. “Somente com o início do livre comércio é que se começou a exigir qualidade. Desde então, a Embrapa passou a pesquisar variedades, visando à força do glúten e à estabilidade. Os produtores passaram a exigir dos órgãos de pesquisa o desenvolvimento de variedades com qualidade para panificação”, observa Julio Albrecht, pesquisador da Embrapa Cerrados (Planaltina/DF).

É certo que tais pesquisas ainda são, de modo geral, norteadas pelo critério de alta produtividade. A demanda da panificaçãoartesanal, particularmente aquela voltada  para o processo de fermentação natural, é incipiente, ainda pequena para despertar a atenção e o interesse dos pesquisadores. De todo modo, diante dos acenos de produtores nacionais de farinhas e do afluxo de novos padeiros artesanais nesse mercado, temos avançado rapidamente. No Rio de Janeiro, encontra-se um dos exemplos mais emblemáticos desse avanço. Rafael Brito, padeiro à frente da The Slow Bakery, lembra que sua primeira fornada comercializada profissionalmente, depois de ter deixado o trabalho de publicitário, aconteceu em meados de 2014: apenas oito pães. De lá pra cá, viu sua padaria crescer e se tornar referência em todo o País, chegando, em pouco mais de cinco anos, a uma produção artesanal de sete toneladas por mês.

De norte a sul, multiplicam-se no Brasil exemplos como esse: pessoas egressas de outras profissões, que inicialmente encontraram na produção de pães de fermentação natural um hobby ou um complemento de renda, aos poucos deixaram suas áreas de atuação, abraçando o novo ofício em que vislumbraram potencial de crescimento. Apesar da notável expansão em curto espaço de tempo, boa parte dos padeiros desta nova geração ainda se questiona até que ponto esse tipo de pão pode alcançar verdadeira democratização num país devoto do pão francês produzido em escala industrial.

DEMOCRATIZAR É POSSÍVEL?

A nutricionista Neide Rigo, que há três anos ministra oficinas de pães de fermentação natural em São Paulo (e eventualmente em incursões pelo Brasil), apesar de mentora de uma legião de padeiros amadores, não se ilude quanto ao fôlego de uma possível democratização desse tipo de pão. “Vivemos numa bolha. No interior do País, o que se consome é pão francês ou pão de forma de saquinho. As pessoas não têm sequer faca de pão. Já aconteceu de eu pedir e me responderem: ‘mas faca pra que, se já vem fatiado?’”, lembra. “Não vejo como o pão de fermentação natural possa disputar espaço com o pão francês. Certa vez, no  sertão da Bahia, eu quis organizar uma oficina com as mulheres do local. Tinha um bom forno de lastro, mas quem disse que eu encontrava farinha sem fermento? Ainda me parece um sonho distante melhorar a qualidade do pão que o brasileiro médio consome.”

Mesmo nas capitais, a difusão do consumo desse tipo de pão ainda depende de um longo processo de educação e formação de cultura. “O público que entende o valor desse pão a ponto de consumi-lo diariamente ainda é um nicho. Dá pra democratizar, mas o processo é lento. Muita gente ainda espera que seja tabelado por quilo, como pão francês. Existe uma mentalidade de commodity que as pessoas ainda querem aplicar a esse tipo de pão. É um processo de educação, temos um longo caminho a trilhar, estamos só no começo”, observa Demian Takahashi, da Farinoca, em São Paulo.

Rafael Brito, da The Slow Bakery, amplia o escopo dessa reflexão: “Convencionou-se que pão artesanal é sinônimo de pão de fermentação natural. Isso não é verdade. O fato de a democratização do pão de fermentação natural ser algo distante não significa que o pão artesanal não possa ser democratizado. Se você pegar fermento biológico e bater uma massa usando farinha que te permita fermentação longa sem tanta hidratação, você gasta cerca de quatro horas entre autólise, descanso, dobra, modelagem, geladeira. No dia seguinte você tem pão. Tudo controlado, calculado, não tem o imponderável da fermentação natural, mas pode render um produto muito melhor que a média. Entre o ótimo e o horrendo há todo um caminho a percorrer”, pondera.

“O processo artesanal pode ser democratizado. Mas por que as pessoas usam Bunge? Porque não tem erro pra chegar naquele resultado específico, não tem dificuldade. Isso transforma o padeiro em carregador de massa. Na panificação convencional no Brasil, o padeiro só é padeiro porque não conseguiu emprego na construção civil. É mão de obra barata pra vender pão barato. Não tem como fazer pão saudável mais barato sem formação de mão de obra”, defende João Pessanha, da Araucária, no Rio de Janeiro.

Eduardo Tavares, da Castália, em Brasília, vislumbra, na disseminação dos processos artesanais na formação de mão de obra, uma das vias de condução da nossa panificação a outro patamar: “Trazemos aqui muitos padeiros com experiência em padaria convencional, e eles acabam descobrindo que há outras formas
de fazer pão. Se começarmos a educá-los desde cedo, em algum momento isso vai aparecer nas padarias convencionais”.

Ludmila Espíndola, sócia de Rafael Brito na The Slow Bakery, reconhece no preço do pão de fermentação natural uma barreira para sua popularização, mas engrossa o coro da defesa da democratização do conhecimento como caminho possível para que a sociedade deixe de ser refém do pão industrial: “Mesmo com a ampliação do consumo que tem acontecido, num país desigual como o nosso, a democratização vai até a página dois. Não se faz bom pão de levain em escala com pouco dinheiro. Demanda uma dedicação intensa, isso nunca vai ter o preço de um produto industrializado. Ao subprecificar, a indústria acaba com a compreensão do valor da comida. Comida não custa só isso que a grande indústria cobra. Se vende por esse preço, é porque não está vendendo comida, mas possibilidades de diabetes, de colesterol alto, por aí vai. O que a gente consegue democratizar, sem dúvida, é o conhecimento. Já recebemos aqui muitas pessoas pra aprender a fazer esse pão”.

A ESCOLHA DA FARINHA: UMA ESCOLHA POLÍTICA?

Para uma efetiva evolução, esse compartilhamento de conhecimento precisa, porém, ultrapassar os fornos e as bancadas de trabalho, chegando aos moinhos e ao campo. Se no âmbito da cozinha profissional testemunhamos nos últimos anos um crescimento do diálogo entre agricultores, artesãos e cozinheiros, no  universo da panificação brasileira, isso ainda está longe de acontecer.

Para que o mercado da panificação artesanal alcance solidez, impõe-se maior comunicação entre todas as pontas desta cadeia: agricultores, produtores de farinha, padeiros. Se aqui essa interlocução ainda engatinha, o avanço mundo afora evidencia a importância dessa aproximação.

O Groupe Blé, criado na França em 2004, é um exemplo entre muitos. Trata-se de um grupo de agricultores, moleiros e padeiros unidos em defesa da biodiversidade e da autonomia alimentar, opondo-se à industrialização da agricultura que tomou corpo no século XX. Seus nortes são a reapropriação dos saberes em torno da produção e da seleção de sementes, o resgate dos sabores perdidos com a padronização genética e a retomada do cultivo de plantas extintas nas grandes culturas de cereais. “Cultivar hoje o trigo como se fazia majoritariamente até meados do século XX não é promover uma tendência retrô ou rejeitar a modernidade como tal. É rejeitar o caminho ao qual a agroindústria nos lança”, observam em seu recém-lançado livro Notre Pain est Politique.

Segundo o grupo, a apropriação da seleção de sementes camponesas pelos agricultores, a recusa de uma farinha branca despida de valor nutritivo e, enfim, a retomada de sabores e práticas tradicionais estão ligadas a um posicionamento político: “Cultivar trigos camponeses permite não apenas emanciparmo-nos do modelo agrícola convencional, mas lançar as bases que permitem livrarmo-nos do pão industrial”, sublinham.

Com objetivos semelhantes, nos EUA, a união entre padeiros, triticultores e pesquisadores tem propiciado a reativação de economias locais de trigos, na medida em que consumidores e padarias passam a explorar diferentes variedades e maior controle sobre o processo de moagem. Uma referência fundamental é o trabalho do agrônomo Stephen Jones, fundador do Bread Lab na Washington State University, que, em parceria com o próprio Chad Robertson e também com o chef  Dan Barber, já resgatou ou desenvolveu milhares de variedades de trigo, algo que representa uma verdadeira insurgência contra o império da farinha “pó branco”, que também dominou o continente americano no pós-guerra.

No Brasil, esse tipo de preocupação, aos poucos, começa a ganhar os primeiros contornos. “Nos últimos dez, quinze anos, tivemos o lançamento de muitas novas variedades de trigo, com adaptações para nossas condições climáticas. Talvez ainda não tenhamos isso voltado para a panificação com foco na fermentação natural, mais longa, ou trigos ancestrais. Acho que, nesse sentido, ainda estamos atrasados. Mas o crescimento da demanda acaba levando a um desenvolvimento da cadeia. O diálogo entre as pontas é fundamental pra que ele possa evoluir. O feedback dos padeiros é muito importante, mas nós também precisamos dar melhores respostas”, pontua Mauro Reichert, da paranaense Biorgânica, produtora da farinha orgânica usada por muitos dos padeiros entrevistados por FEIRA.

Em 2019, o lançamento do projeto Trigo de Origem, da Moageira Irati, também paranaense, apontou para um reconhecimento da importância de maior integração na cadeia produtiva. A linha de farinhas feitas exclusivamente com trigo paranaense, lançada pela moageira em outubro passado, tem o propósito de atender necessidades específicas da panificação voltada para a fermentação natural. Embora  o cultivo não seja orgânico e as sementes não sejam selecionadas por agricultores, mas oriundas do portfólio de uma empresa de desenvolvimento genético, o projeto tem o mérito de alimentar a comunicação e a troca de conhecimento entre os diferentes atores da cadeia. “Não é sustentável usar farinha italiana pelo resto da vida. É importante termos um produto local de qualidade. Essa é a primeira iniciativa no Brasil em que se ousa rastrear todo o processo, com diálogo entre todas as pontas. Os sacos de farinha que já estão à venda têm um QR code que traz informação sobre o agricultor, a moageira, traz a ficha técnica com os dados de que o padeiro precisa. Isso é algo completamente novo aqui”, observa Eduardo Freire Feliz, padeiro do Lucca Cafés Especiais, em Curitiba, um dos curadores do projeto.

Apesar dos avanços, o debate acerca do assunto ainda é claudicante e marcado por grande disparidade de opiniões no que diz respeito à viabilidade do cultivo de trigo no Brasil e à qualidade das farinhas aqui produzidas.

Rafael Brito, da The Slow Bakery, é taxativo: “Trabalho com farinha italiana técnica, que é um blend de diferentes tipos de trigo, de modo a chegar na melhor farinha possível para a panificação. Recebo muitas críticas a respeito da minha escolha, alegações de que já temos boa farinha de trigo no Brasil. Mas é preciso comparar resultados. A questão é: que tipo de pão você quer fazer? Ainda não temos boa farinha técnica aqui. Não temos tradição de moleiro, não temos tradição de trigo que não seja commodity. Algumas farinhas brasileiras que já testei não me permitiram fazer o pão que eu gosto de fazer, um pão com leveza. Cada um tem que saber que tipo de pão quer”.

Flávia Maculan, da Tøast, em São Paulo, faz a mesma avaliação: “Seria incrível usar farinhas brasileiras, já testei algumas, mas são muito inconstantes, cada lote vem de um jeito, não dá pra lidar com essa inconstância o tempo todo, preciso ter um padrão na minha produção. Não existe certo ou errado, mas tem aquilo que você quer do pão, tem uma questão de gosto”.

É unanimidade entre os padeiros ouvidos por FEIRA que as farinhas brasileiras, embora tenham melhorado nos últimos anos, ainda são, de modo geral, muito irregulares – havendo eventualmente mudanças bruscas de um lote para outro – e deficientes em informações técnicas. Não há categorização, faltam laudos e  testes mais minuciosos. Mas não são poucos aqueles que, mesmo reconhecendo as dificuldades em trabalhar com essas farinhas, têm optado por esse caminho.

“Quando usava farinha francesa, tinha que fazer o exercício de entendê-la a cada lote, porque não vinha sempre igual. Entre fazer esse esforço pra usar um produto que vem do outro lado do mundo e fazer com uma farinha orgânica do Paraná, optei pela brasileira. Já os italianos têm muita expertise nesse assunto, as farinhas são muito estáveis. Mas é uma farinha que não está viva. Tem mais de um ano de validade, como é isso?”, questiona Demian Takahashi.

Izabela Tavares, da Iza Padaria Artesanal, em São Paulo, também se entregou ao exercício de compreender a farinha orgânica brasileira e adaptar-se a ela: “Três anos atrás todos me diziam que farinha nacional não dava pão. É desafiador, mas dá pão. Quando você abraça isso, tem que saber que não há nada pra equilibrar essa farinha no final da produção. Se chove mais, ou menos, vai haver impacto no produto final. Isso pode dar muita dor de cabeça no dia a dia. É um desafio lidar com um lote totalmente fora do padrão. Mas qual é o padrão de uma produção orgânica? Uma cenoura orgânica, por exemplo, não tem padrão. É a mesma coisa com a farinha”, pondera.

“Muitos padeiros reclamam que acabam tendo que mudar suas receitas por causa dessa variabilidade. Acostumaram-se a replicar sempre a mesma receita. Acho que nossa arte é olhar praquela farinha, apertá-la, trabalhar pra extrair dela o melhor. Essa variabilidade demonstra que é uma farinha mais viva”, corrobora Dilson Menezes, da Varanda Pães Artesanais, em Brasília.

Alethea Suedt, da A Padeira, em São Paulo, vai além: “Abrir o saco de farinha, entender o que ela é, aprender a conhecê-la é mágico. Mas eu queria mais, queria entender melhor o cultivo do trigo, o processo de moagem. Ainda é quase nula a comunicação entre produtores de trigo e padeiros. Essa comunicação seria  fundamental. Gostaria de conhecer quem planta o trigo que vem pra mim. Costumo dizer que, no fundo, o produtor de trigo está plantando pão”.

Muitos dos padeiros que têm encarado esse desafio fazem-no conscientes de que é o único caminho possível para a evolução da qualidade na produção de farinha no País. “Desde o começo, me propus a trabalhar com farinhas orgânicas nacionais. Se ninguém usar, o mercado não se desenvolve. Sei que os próprios  produtores estão engatinhando ainda. Falta informação técnica, falta categorização. Levei muito tempo pra dominar a farinha que uso. A contrapartida é o prazer de incentivar o mercado brasileiro a evoluir, considera Guilardo Rocha, da Pedra & Oliva, no Rio de Janeiro.

O desejo de fomentar o mercado local foi uma das razões a motivar também Hanny Guimarães. Hoje padeira no Blue Hill at the Stone Barns,em Pocantico Hills, Nova Iorque, Hanny comandou por dois anos a padaria do Futuro Refeitório, em São Paulo, onde optava por usar exclusivamente farinha orgânica nacional em sua produção. “Eu não queria aumentar a padaria, queria melhorar o diálogo com a cadeia. Meu pão não era o mais gostoso de todos. Tem um monte de gente fazendo pão foda, usando farinha estrangeira. Às vezes eu pensava: ‘queria fazer um pão foda assim’. Mas também queria poder colaborar com uma cadeia local. Se tinha gente quebrando a cabeça moendo farinha orgânica nacional, eu queria fazer parte disso”, reflete a padeira, para quem a dificuldade de lidar com a inconstância do produto acabava por fazer dela uma profissional melhor. “A gente penava com a farinha brasileira, tinha lote que chegava difícil demais. Mas fazer testes exige de nós uma inteligência, faz com que a gente fique um pouquinho melhor, não fique só no conforto de receber uma farinha superconfiável, que veio lá da Europa, que às vezes fica, inclusive, parada no porto, envelhecendo. Se não for assim, a gente nunca vai saber resolver problema, essa é a beleza da coisa. Se já está tudo dado, você pode virar as costas.”

Para ela, parte do êxito nessa evolução está em se descolar dos modelos em voga. “A gente quer fazer exatamente igual ao que se faz nos EUA, usar muita água, muita água, numa farinha que não se presta a isso. Não se trata só de hidratação, é todo um processo que vem da inteligência, de se perguntar o que a gente consegue fazer aqui e não querer fazer igual ao que se faz em São Francisco. Muitas vezes, as pessoas olham para as porcentagens e esquecem o processo. Tem um tempo acontecendo, a natureza agindo, dizendo ‘se liga, sou eu que mando aqui’. É preciso levantar essas discussões e não apenas falar ‘olha que legal o pão de fermentação natural’. O consumo pelo consumo não muda nada. Tem que ser consumo e reflexão, educação.”

ALÉM DO PADRÃO

Engajar-se nesse processo impõe abandonar a zona de conforto, ousar enxergar o pão para além de receitas, fórmulas e padrões. Se a nova onda do pão rendeu ao mundo um sem-número de extraordinárias padarias, há um efeito colateral que não pode ser ignorado: uma indiscutível padronização. De São Paulo a Copenhagen, de São Francisco a Melbourne, os pães produzidos nas padarias modernas tornaram-se, todos, muito parecidos. Cortá-los ao meio depois de assados, fotografá-los e mostrar ao mundo nas redes sociais o tamanho de seus alvéolos parece ter se tornado o ritual de iniciação dos novos padeiros, estejam onde estiverem.

“Depois de voltar de uma temporada na França, eu descobri aqueles pães grandes, bem assados, diferentes do que eu fazia lá, e me pareceu algo inatingível. Virou um certo rito de passagem: você quer provar para si mesmo que pode fazer aquele pão. E sinto que meus clientes ainda buscam esse pão com a cara do pão da Tartine. Não importa o sabor, tem que ser grande, tem que ter aqueles alvéolos”, constata João Pessanha. “Já vi gente nas redes sociais postando foto de pão com alvéolo tão grande que caberia uma batata dentro, e ninguém percebe que aquilo deu errado, todo mundo acha maravilhoso”, brinca.

Neide Rigo desde sempre é importante voz na defesa de um pão que se liberte dos novos dogmas da panificação: “Meu pão não é perfeito, mas é um pão livre. Aperfeiçoei o processo de produção com fermentação natural, quando fui ao Senegal, com dois padeiros do sul da França. Lembro que o pão dos franceses não  tinha nada a ver com esse pão mais americano. Era um pão mais massudo, mais denso, é assim que eles gostam. Sempre falo para os meus alunos: não existe só um tipo de pão. Essa hipervalorização da qualidade da farinha, da quantidade de água, da perfeição dos alvéolos assusta, cria um padrão inatingível, parece que é para poucos. É a ditadura do alvéolo”.

“Há uma busca por um pão supostamente perfeito, alveolado, leve. O Brasil vai dar farinha boa pra esse pão? Se der, ótimo. Mas se der farinha com vocação pra outro tipo de pão, por que não fazer? Por que não entender como é o pão que resulta do trigo que a gente consegue cultivar aqui?”, arremata Alethea Suedt.

Como naturalmente acontece em qualquer processo de evolução, aos poucos, começa-se a refletir sobre a padronização a que se tende atualmente, e isso pode levar ao que parece ser um próximo ciclo. Cada vez mais padeiros questionam essa uniformização, voltando-se para a busca de uma produção que se conecte  ao território onde se encontram, seja na escolha da farinha que usam, na busca por cereais locais ou no resgate de receitas tradicionais.

Ao projetar caminhos para o futuro da panificação brasileira, são muitos os padeiros que defendem não apenas uma melhor compreensão do trigo que se cultiva e da farinha que se produz, mas a capacidade de incorporar à panificação elementos que dialoguem com nosso terroir e nossa identidade cultural.

“Além de usar exclusivamente farinha brasileira, procuramos valorizar também certos ingredientes em razão do contato constante com pequenos produtores nas feiras. A abóbora, a batata-doce estão sazonalmente nas nossas feiras, por que não usar? Por que não trazer para o pão a farinha de mandioca que a gente come no barreado?”, cogitam Lucas Gomide e Gustavo Alberge, da Maçã, em Curitiba. “A técnica que a gente usa no nosso pão Morretes (alusão à cidade paranaense que tem forte produção de farinha de mandioca) é a mesma que a Tartine Bakery usa no pão de aveia. A gente faz um mingau com farinha de mandioca, que é um produto presente no Brasil inteiro, dos pampas à Amazônia. Para nós, é muito simbólico incluir a mandioca numa panificação que se pretende brasileira. O pão fica amarelo, não é tão familiar para o público, vende-se um pouco menos, mas é um processo educativo, questão de explicar para as pessoas que ele é, sim, um pão de fermentação natural, só é diferente, não é feito apenas com farinha branca”.

Izabela Tavares acredita que aliar técnica e memória é um caminho desejável não apenas na cozinha, mas também na panificação: “Por que não fazer uma broa de milho que lembre o pão da minha avó, mas com fermentação natural?”.

“Temos pão de abóbora orgânica, antes já fizemos com batata-roxa. Já testamos pão com açaí, fizemos um folhado de açafrão-da-terra com gergelim kalunga e semente de caruru. Isso é uma forma de sair um pouco do quadrado e, ao mesmo tempo, participar do processo de sobrevivência de certas frutas, certas plantas”, reflete Eduardo Tavares. “É uma maneira de diversificar o sabor do nosso pão pra acompanhar a diversidade do Brasil. Tem muito ingrediente que pode ser trazido para o pão, ele pode ser um veículo. Tenho certeza de que, a essa altura, alguém na Bahia já testou usar dendê na panificação. E por que não?”.

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