Texto: Constance Escobar, Elaine de Azevedo e Patrícia Moll
Fotos: Fellipe Abreu e Samuel Antonini
“Eu quero uma casa no campo, do tamanho ideal, pau a pique e sapê, onde eu possa plantar meus amigos, meus discos e livros e nada mais.” Os versos da canção de Zé Rodrix e Luiz Carvalho, indissociáveis do vozeirão de Elis Regina, jamais ecoaram em nós com tanta força como nestes últimos anos, quando uma pandemia nos trancafiou em nossas jaulas urbanas, impondo a convivência com um hóspede nem sempre desejado: o legado das nossas escolhas.
Não foi pequeno o contingente de pessoas que, para sobreviver a esse período, precisou de mais do que entoar uma canção e ousou cair na estrada para não mais voltar. A onda crescente de indivíduos que deixam os centros urbanos, no entanto, antecede a pandemia de Covid-19, que veio jogar luz em um movimento que já há alguns anos aponta uma tendência e, de tão expressivo, tem sido objeto de estudo no Brasil e no mundo.
Neorruralismo é o termo que pesquisadores têm usado para nomeá-lo. O termo é polêmico, gera reações e talvez não dê conta de definir o fenômeno em sua inteireza – são muitas as questões ainda não abordadas pelos estudiosos. Trata-se de batismo despretensioso em cujo escopo estão pessoas que atuam no meio urbano com atividades variadas, com ou sem vínculo anterior com o meio rural, e que decidem migrar em busca de qualidade de vida, de mais tempo e lazer, de mais liberdade, enfim. Muitos migraram da cidade para o campo motivados apenas por uma mudança de paisagem ou de estilo de vida, mas não é inexpressivo o universo dos que sentiram necessidade de plantar mais do que amigos e livros no novo ambiente.
Ainda não é possível estimar quanto esse afluxo poderá transformar as feições do ambiente rural brasileiro – para o bem e para o mal –, mas algumas de suas facetas já começam a se revelar.
Como observa Maria de Lourdes Zuquim em Os caminhos do rural, o modelo de desenvolvimento brasileiro privilegiou historicamente a expansão industrial nas cidades e o setor produtivista no campo, alimentando a noção de superioridade do urbano sobre o rural e a hegemonia da grande propriedade sobre a pequena. “As cidades passaram a ser vistas como o palco da modernidade, objeto de todas as atenções, e acabaram por definir a visão que o Brasil tem de si mesmo”, pontua. Ao meio rural que não partilhasse o conceito vigente de modernização agrícola restou o rótulo de arcaico, atrasado.
Até que ponto o corrente êxodo urbano teria o condão de pôr em xeque esse conceito? Sem pretensão de voltar com respostas, mas dispostos a fazer reverberar perguntas cruciais, pegamos a estrada para ouvir, entre expoentes desse movimento, aqueles que se voltaram para a produção de alimentos, alguns deles instalados no campo há tempo suficiente para já ostentar uma trajetória consistente e reconhecida no novo ofício. Entre os migrantes com quem conversamos, buscamos privilegiar o espectro das pequenas propriedades, muitas vezes comandadas por agricultores e criadores que se tornaram também artesãos. São exemplos de atores que desafiam uma noção ultrapassada de modernidade e precipitam possibilidades de futuro para além do modelo que o Brasil tem historicamente projetado.
CURIANGO
Em fevereiro de 2013, quando Rafael Cardoso deixou Belo Horizonte para se estabelecer em Silveiras, no lado paulista da Serra da Bocaina, região onde nasceu, ainda não podia prever que o reencontro com o campo mudaria irremediavelmente sua vida, ao desencadear um processo íntimo e profundo de reconexão com a memória.
Rafael não se entende exatamente como um neorrural por definição, uma vez que, tendo nascido no ambiente rural, a ele retornou depois de uma temporada na cidade grande, em que atuou como chef de cozinha. “Ao contrário, fui um neourbano por alguns anos”, brinca.
O fato é que o retorno à terra natal inaugurou em sua trajetória uma nova dimensão: possibilitou a ele a percepção do ambiente rural como ambiente da gastronomia por excelência. “Atravessei minha adolescência contestando os saberes caipiras; hoje entendo que são poderosíssimos”, confessa. Motivado pela compreensão do território, passou a estudar os hábitos alimentares na região. “Quando cheguei aqui, eu não via ninguém olhando para o Vale do Paraíba, falando de peito aberto sobre cozinha caipira, sobre costumes tradicionais. Cresci perto de monjolos, de leilão de assados e prendas em fornalhas. A construção do meu paladar teve esse enriquecimento”, reflete.
Suas pesquisas destes hábitos alimentares ocorrem pela vivência da oralidade, mais do que pelo viés do saber acadêmico. “Os caipiras são as comunidades que se formaram às margens dos caminhos, um povo que só queria comer e transmitir seus valores através de uma economia de subsistência. Foram esses homens da terra que me ensinaram muita coisa. As informações colhidas pela Embrapa, por exemplo, ensinam a mesma coisa ao sujeito que está em Rondônia e ao que está em Santa Catarina. E não é assim que a natureza funciona, a natureza é especializadíssima”, pondera.
Essa assimilação da cultura local conduziu suas escolhas como produtor rural. No sítio onde vive, propriedade de sua família há algumas gerações, planta milho vermelho da Bocaina a partir de sementes crioulas e cria porcos carunchos, típicos da região. Ostenta ainda uma notável oficina de charcutaria, a Curiango Charcutaria Artesanal, que traduz o melhor do encontro entre suas duas facetas: o produtor rural e o cozinheiro. Um trabalho, que além da indiscutível qualidade gastronômica, tem a potência de conceber produtos não despidos de sua carga histórica e cultural.
Como todo aprendizado é via de mão dupla, Rafael busca na troca de saberes também impactar de algum modo a vida da comunidade na qual se inseriu. “Gostaria de usar meu conhecimento para melhorar as vidas desses pequenos produtores com quem aprendo, mas é difícil e não quero parecer arrogante. Meu vizinho, por exemplo, que é meu maestro de saberes tradicionais, produz leite. Ele é empregado das vacas e não o contrário. Nunca teve um dia sequer de férias, vende o litro a dois reais, é prisioneiro de um sistema. Se ele passasse a produzir queijo, mudaria essa lógica, traria valor gastronômico a um produto que poderia mudar seu caminho, mas ainda não consegui convencer”, avalia.
Se ainda não conseguiu afetar a vida do vizinho, teve mais sorte a quilômetros dali, em Passa Quatro, Minas Gerais. Na relação com João Laura, o homem por trás da magistral produção de queijos da Queijaria Santo Antônio, a troca de saberes se aperfeiçoou. “Posso dizer, sem falsa modéstia, que ajudei a mudar a vida do Joãozinho. Ele vendia basicamente muçarelinha e só passou a vender queijo curado depois de nos conhecermos. Mas João tem uma vivência parecida com a minha, saiu do Vale do Paraíba, olhou para o mundo e voltou.”
Ao se cruzarem nesse reencontro com o território, um afetou a vida do outro. Provocado por Rafael, João entendeu a importância de inovar no ofício que herdou do avô e passou a produzir queijos mais sofisticados a partir de técnicas de fermentação natural. Por sua vez, pavimentou o caminho que traria Rafael de volta ao comando de um restaurante.
Juntos inauguraram, na fazenda que abriga a sede da Queijaria Santo Antônio, a Casa do Monjolo, restaurante de inspiração genuinamente caipira, que presta homenagem à região estendida do Vale do Paraíba, seja na matéria-prima com que se trabalha, seja no contexto histórico e cultural do que se escolheu servir. Em sua cozinha, milho e porco são protagonistas, mais precisamente porcos carunchos cuja criação Rafael impulsionou na região. No caso, carunchos de genética desenvolvida por ele, mas criados na própria fazenda que abriga a manufatura de queijos e o restaurante – animais cuja dieta inclui milho crioulo e soro fresco da própria queijaria.
“O caruncho era um porco que estava por ser extinto, então tem problemas genéticos muito grandes porque deixou de ser interessante comercialmente, foi relegado a famílias que o mantiveram como uma espécie de lembrança do passado, um bibelô. Não havia intenção de manter uma raça produtiva, então houve endogamia, cruzamento de parentes, causando defeitos genéticos. Quando comecei a trabalhar com caruncho, fiz um trabalho autodidata de estabilização genética desse animal. Meus exemplares hoje têm grandes qualidades, engordam rápido, são rústicos. Mantiveram as características do caruncho, que é a pelezinha fina, uma grande aptidão para banha”, conta.
Essas qualidades chegam aos fogões da Casa do Monjolo, onde se revelam em torresmos, arrozes de suã, lombos com vinagrete de feijão paquinha e especialmente em sua majestade, o leitão pururuca.
É a beleza do fechamento de um ciclo que se inicia na terra e se encerra no prato, onde se servem não apenas ingredientes, mas cultura e memória.
LANO ALTO
“Lá no Alto”. No alto da montanha. O nome é criativo; as embalagens dos produtos, assim como a estética das redes sociais, inteligentes. O domínio eficiente da comunicação chama a atenção nesta iniciativa neorrural liderada por Paulo Lemos, o Peèle, ou simplesmente PL. O publicitário se "descaipirizou" enquanto adolescente ao sair de Goiás e, já adulto, voltou às origens para reencontrar suas referências rurais e afetivas.
Sua vida é marcada por muitas trocas de cidade e adaptações. Cresceu em São José dos Campos, interior de São Paulo, e, aos oito anos, mudou-se com a família para Jaraguá, em Goiás. Ali aconteceu sua formação como pessoa e o contato com a cultura caipira através de manifestações como a Festa do Divino, a Cavalhada e a moda de viola. Seis anos depois, mudou-se novamente, desta vez para Brasília. “Cheguei falando porrta, porrque, e já no primeiro dia de aula, fui completamente aniquilado. Sem perceber, comecei a mudar o meu sotaque”, lembra.
Nesta época, um computador presenteado por sua avó despertaria o interesse pela Internet, o que lhe garantiu o primeiro emprego, aos 15 anos. Pouco mais tarde, já em São Paulo, faria faculdade e trabalharia em agências. Em uma delas conheceu sua esposa, a também publicitária Yentl Delanhesi. Anos depois, o casal partiu para os Estados Unidos, onde passou uma temporada em Miami e outra em Los Angeles.
Foi lá que PL voltou a se “caipirizar” e descobriu o sentido do analógico, da qualidade de vida, do tempo. Ao estagiar em uma fazenda urbana – onde cuidou de cabras, galinhas e aprendeu novos processos e conceitos, como preparar queijos e pães –, descobriu o prazer de produzir o próprio alimento. “Quebrei a cabeça, mas foi um caminho sem volta”.
Quando retornaram ao Brasil, decidiram se instalar em Catuçaba, na zona rural de São Luíz do Paraitinga, São Paulo. Na fazenda, tornaram-se cada vez mais "autônomos dependentes", como ele define. Porque, na roça, segundo suas próprias palavras, existe um tipo de solidariedade que precisa ser construída e cultivada para a sobrevivência e a boa convivência em comunidade. Portanto, uma das premissas implícitas nessa migração é estar disposto a aprender sobre a complexidade do coletivo, endossar a "necessidade do outro" – algo de que talvez tenhamos prescindido como urbanos.
"O prisioneiro e a chave da prisão". Essa é a imagem que o publicitário evoca para se referir aos citadinos que questionam sua rotina urbana, mas são incapazes de sair dos grandes centros ou de renunciar à rotina laboral intensa e ao dinheiro angariado com ela. A rotina atravessada por intermináveis horas no trânsito e contaminada pela síndrome do temor de perder oportunidades deu lugar a um cotidiano permeado por variadas e estimulantes atividades compartilhadas pelo casal, que hoje compartilha o sítio com os filhos Pilar e Lauro, além de cinco colaboradores.
As redes sociais são o canal para estabelecer contato com a cidade e com os consumidores. A internet propiciou a migração do casal, que ainda realiza alguns trabalhos de publicidade paralelamente ao dia a dia na propriedade, onde se ocupam da criação de vacas e galinhas, e produzem alimentos que incorporem valor à matéria-prima – “em vez de vender o leite para a cooperativa a R$ 2,50 o litro, eu vendo o queijo por R$ 150 o quilo”, conta o publicitário.
Além dos laticínios, como premiados queijos maturados, requeijão de prato e doce de leite, a fazenda experimental, como definem, tem até uma mestre-fermenteira: Babi Fonseca comanda a fabricação de bebidas como kombucha e hidromel, fermentado de mel e amora, de mel e cebola e outras invencionices sazonais. A Lano Alto também revende alimentos de produtores da região, como café e o famoso fubá do Nerso. Desde o final de 2022, há uma loja para venda direta na propriedade.
Aventuram-se ainda no universo do turismo de experiência, oferecendo cabanas isoladas para quem deseje uma imersão no local ou mesmo o aprendizado em cursos, como o de construções sustentáveis e de queijos. “Muita gente começou a se interessar pelo nosso dia a dia, daí surgiu a ideia de formatar conhecimento”, explica.
O modelo de negócio diversificado gera dependência de um grande centro, no caso São Paulo, o que tende a acontecer com muitos produtores neorrurais. Nem sempre é uma possibilidade – ou mesmo uma escolha – priorizar a soberania alimentar: são muitos os que não apenas precisam recorrer a outros produtores locais para se alimentar, como dependem dos grandes centros para escoar sua produção. Isso é compreensível porque comercializar alimentos in natura não é exatamente uma atividade de retorno garantido e depende de grande escala para pagar a operação. E a racionalidade neorrural costuma apostar na valorização da produção artesanal e orgânica por parte dos urbanos.
A trajetória de mais de dez anos e a consolidação no novo ofício talvez justifiquem o fato de PL, assim como muitos migrantes, não se enxergar como neorrural. Considera que o termo não define quem migrou há mais tempo, por exemplo. “E é uma criação urbana que reverbera no momento em que vivemos, mas é muito simplista para traduzir algo que é inerente ao êxodo urbano em diferentes momentos e escalas”. Neorrural, assim como hipster, é sempre "o outro, nunca eu mesmo".
SÍTIO VINHÁTICO
Os facões nas cinturas de Vanessa, Paula e Muriel, e a destreza com que se movem dentro da mata que abraça seu bananal evocam de imediato uma imagem de bravura. Bastam poucos minutos de conversa para nos revelar que a verdadeira força das três biólogas que se tornaram agricultoras reside mesmo é em suas ideias.
Vanessa Gardim, Paula Cerruti e Muriel Assumpção foram contemporâneas na faculdade Biologia em Londrina e, de alguma forma, sempre compartilharam o desejo de estar na terra. Particularmente Paula e Vanessa desenvolveram trabalhos junto a assentamentos do Movimento Sem Terra – a primeira como educadora, a segunda como assistente técnica. Foram experiências fundamentais em sua formação e no projeto de futuro que passaram a idealizar. “Eu gostava de atuar na assistência técnica rural nos assentamentos, mas comecei a sentir vontade de trabalhar em um lugar que fosse meu. Quando terminei o mestrado em agroecologia, naquele cenário de ruptura institucional em que ingressamos em 2016, percebi que era hora de deixar o Paraná e ir em busca disso”, conta Vanessa.
Na época, Paula já estava no Rio de Janeiro, onde trabalhava na Fiocruz e era bolsista em um projeto do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). Não titubeou em incentivar a mudança da amiga. Já havia conhecido Aldeia Velha, vilarejo fluminense no Município de Silva Jardim pelo qual se encantou – especialmente por ser uma área de ampla atuação de movimentos sociais.
Juntamente com Muriel, que nunca se enxergou de forma permanente em um grande centro urbano, adquiriram um sítio em Bananeiras, na mesma região. Ao se instalarem, elas tinham muitas dúvidas e poucas certezas. “A gente queria construir um espaço agroecológico, mas não sabia o que produziria porque precisava primeiro encontrar a área e entender o que ela teria a oferecer. Nunca imaginamos trabalhar com banana. Pensamos mil coisas, mas banana? No entanto, era o que nos esperava aqui”, revelam as agricultoras, que além do cultivo, aos poucos começam a arriscar processos de beneficiamento da fruta.
As demais respostas viriam, pouco a pouco, das trocas estabelecidas com a comunidade. Em Silva Jardim, conheceram Rayssa Maria Reis, que se uniu a elas na lida na propriedade que batizariam Sítio Vinhático. Embora nenhuma das quatro tivesse a exata noção do que poderia brotar daquela empreitada, já sabiam precisamente o que não lhes interessava. “A gente não veio aqui para criar uma bolha de pessoas brancas, desconectadas, privilegiadas, estudadas, com propósito exclusivo de produzir e vender orgânico certificado para a cidade grande, sabe?”, dispara Vanessa.
Sua experiência junto ao MST, assim como a de Paula, seria determinante na compreensão de que fincar os pés na terra era o caminho para a sustentabilidade ambiental, mas também, não menos importante, para a sustentabilidade social. “O MST nos mostrou que a mudança tinha que acontecer no campo. Daí a vontade de construir na base e não ser apenas alguém da universidade que chega ali, dá uma instrução e depois volta para uma casa estruturada, com todos os seus recursos, compra suas coisas no mercado...”, refletem.
O trabalho no Sítio Vinhático é sempre orientado pelo desejo de pertencimento àquele lugar, de conexão com aquelas pessoas. Criaram elos com a rede de agroecologia Serramar, braço da articulação de agroecologia nacional. A partir dali aconteceram as trocas cotidianas: “Somos muitos: pequenos agricultores, técnicos, consumidores, pessoas que trabalham nas secretarias, todos querendo construir uma outra perspectiva de produção e assim se manter no campo”, pontuam.
Elas percebem que essa visão social nem sempre está presente nas pessoas que têm migrado da cidade para o campo, que muitas vezes trazem consigo modelos de exploração que tendem a reproduzir no ambiente rural. Daí a importância de se integrar à comunidade, a um processo de construção coletiva.
Não por acaso não se sentem à vontade com o termo “neorrurais” ou com a expressão “novos rurais”. Preferem o conceito de novos campesinos. “Não é uma bolha fora da sociedade, pessoas vivendo tranquilas no campo. Não. É espaço de luta, de resistência, de permanência. É estar inserido com outras pessoas que já estavam aqui antes, é inclusive possibilitar outras coisas para essas pessoas, que às vezes por falta de acesso nem ousam se imaginar em outra condição”, pondera Vanessa.
E conclui: “Quando optei por vir morar em Bananeiras, um lugar onde não há quase nada a não ser as coisas que a gente mesmo constrói, foi também para não ser alguém que só passa pelo lugar. Estou aqui construindo uma rede para minha vida. Se vou morar aqui, quero saber a história dessas pessoas; quero que elas também saibam a minha”.
SÍTIO GRAÚNA
Chegar às montanhas de Minas Gerais é sempre oportunidade de introspecção – “Minas é dentro e fundo”, diria o poeta. Por contraditório que possa parecer, isso se acentua quanto mais perto se está do céu. Assim é Paraisópolis, cenário que abriga o Sítio Graúna, onde Davis, Roberta, Estela e Cibele fizeram morada. Café e pão fresco sobre a mesa posta na cozinha prenunciam o tanto de coisas que só os mineiros sabem. Mas é sempre possível aprender com eles – Davis e Roberta já podem se considerar graduados em mineiridade.
Como acontece com muitos neorrurais, ele já tinha referências anteriores do universo rural: seu pai é produtor de café e a sua mãe foi assentada do Movimento Sem Terra. Já ela era pedagoga e sempre foi urbana, do tipo "sem plantas no apartamento". A busca por ar puro, silêncio e qualidade de vida levou o casal a Minas Gerais oito anos atrás. A segurança foi a cereja no bolo: "aqui você perde a neura e a preocupação com a violência", conta Roberta. Estela foi na bagagem; Cibele já nasceu mineira.
De início, plantaram todo tipo de hortaliças de ciclo curto, como alcachofra, aspargos, temperos e folhosas. Mas logo desistiram da venda in natura, dos deliveries e das feiras na cidade próxima. Precisavam de uma atividade que trouxesse menos gastos e mais retorno. Passaram a produzir frutas vermelhas, como morango, framboesa, amora, mirtilo, e plantar árvores de frutas nativas da Mata Atlântica, como jabuticaba, cereja-do-Rio-Grande, grumixama, pitanga, uvaia. Uma safra exuberante de morangos lotou os refrigeradores e levou-os a aprender a fermentar – a necessidade de beneficiamento é uma realidade que se impõe a muitos neorrurais.
Na lida diária, o casal divide funções: Roberta assume a enxada, enquanto Davis toca a pequena agroindústria, de onde saem geleias, vinagres, molhos de pimenta, temperos prontos e ervas desidratadas para infusões.
A menina dos olhos de Davis é o projeto experimental Gurita, dedicado às bebidas alcoólicas feitas a partir de água da nascente, fermentação selvagem, flores e frutas orgânicas do Graúna. “E tempo”, como costuma arrematar. São cervejas e vinhos de outras frutas que não uvas, os chamados petnat, abreviação de petillant naturel, que significa “naturalmente espumante” – uma tendência recente no mundo dos vinhos naturais. Outra aposta é o melomel, ou “borbulhantes de mel, água e frutas” na linguagem do casal.
A produção inteiramente orgânica é vendida rotineiramente pela Internet (principalmente para São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo) e esporadicamente em eventos de que participam. As redes sociais do Sítio Graúna, além de canal de comercialização, “vendem” também o estilo de vida rural: o misto de imagens bucólicas do cotidiano e relatos sobre os desafios do campo, permeado por histórias da família, leva boa parte dos seguidores a se perguntar o que ainda os prende à cidade.
Parte da beleza desse estilo de vida está nas trocas com a comunidade local, que em certa medida compensa a ausência de assistência técnica via políticas públicas. Embora boa parte da geração que vive na região ainda estranhe o sistema orgânico do Sítio Graúna, isso não impede o casal de perseverar, transformando a propriedade degradada em solo cada vez mais verde e fértil. “Nem tudo é utilitário, manter áreas verdes para reflorestar e cuidar da fauna pode não gerar lucro, mas é essencial para nós", reflete Roberta.
Sabem que o que fazem ali é também política, no melhor sentido da palavra. “Essas pequenas bolhas pintam o país de verde e compensam as queimadas na Amazônia", pondera Davis. "Criar nossos filhos nessa realidade é uma forma de ação política.”
Nos caminhos abertos pelos "imigrantes da utopia" – como a argentina Luciana Trimano batiza essa nova geração advinda das fileiras do êxodo urbano –, talvez ressurja a esperança de um olhar de dignidade para o rural. Um futuro que, quem sabe, os filhos dos filhos dos filhos dessa utopia verão.