Entrevista: Constance Escobar e Thiago Nasser
Foto: Fellipe Abreu
Professora na Universidade Federal do Espírito Santo, a nutricionista Elaine de Azevedo tem atuação nas áreas da Sociologia da Alimentação, da Saúde e Ambiental. Em seu podcast Panela de Impressão, não deixa dúvida de que é uma maiores pensadoras da alimentação no Brasil. Entre os muitos temas para os quais volta seu olhar a um só tempo generoso e crítico, o neorruralismo tem ocupado lugar de destaque em suas pesquisas, como revela a FEIRA nessa entrevista.
FEIRA Qual é o escopo do seu trabalho de pesquisa sobre os neorrurais?
ELAINE O neorruralismo é um movimento disperso, poroso, plural. Há muitas razões que motivam grupos diversos a assumir esse movimento. Alguns estudos já reconheceram o que leva os neorrurais a migrar. E são motivos variados. A comunicadora argentina Luciana Trimano fala da busca pela manutenção da utopia. Há quem busque mais tempo de lazer. Outros estão à procura de novas formas de trabalho, de sociabilidades e de relação com a natureza. O pesquisador Gian Giuliani fala na “nostalgia pelo rústico”, por exemplo. Essa é uma marca presente em todos os grupos que integram esse movimento. Mas eu me interesso em conhecer mais sobre quem migra para produzir seu próprio alimento e se insere no campo de estudo das novas ruralidades. Produzir sua comida e buscar a soberania alimentar é o motivo de grupos mais específicos. É especificamente isso que me interessa: novos rurais que produzem comida.
FEIRA Falando precisamente do movimento de pessoas que buscam o campo pra se tornar produtores de alimentos, você percebe um risco de esse movimento ter como efeito colateral a perda de protagonismo dos locais, aqueles que já estavam no campo? Fora o risco da glamurização...
ELAINE Pode acontecer, é algo real e já tem gente sentido isso. Nada que se compare ao risco relacionado à falta de políticas públicas no meio rural, que persiste há 520 anos. Esse, sim, é um problema real de interferência na qualidade de vida de quem vive naquele ambiente.
O que poderia ser problema para alguns eu vejo como oportunidade. O neorruralismo pode também ser um processo inclusivo, que traga atenção para o trabalho das pessoas que já estavam no campo. É claro que os que já estão no campo podem se sentir “invadidos” no seu território. Assim como os neorrurais podem se sentir rechaçados. É um processo natural que se desenrola quando alguém estranho chega em território alheio. Mas eu quero crer que o conhecimento local dos rurais “raiz” vai acabar sendo valorizado nesse processo. Muitos novos rurais que chegam ao campo para produzir seu alimento ainda não sabem fazer isso. E vão precisar recorrer ao conhecimento das pessoas que ali estão. O diálogo, os embates e trocas vão acontecer naturalmente. E isso pode ser positivo. Neorruralismo não é somente uma busca pelo exótico ou um movimento de proprietários burgueses de camionetes a diesel exigindo espaços elitizados em paisagens bucólicas.
Agora, é importante que essas pessoas levem consigo uma preocupação não só com sua qualidade de vida ou com a natureza, mas também com o social. Não podem reproduzir no campo o padrão secular da relação patrão-empregado, por exemplo. É preciso encarar as desigualdades sociais no campo, discutir com os movimentos sociais rurais que já debatem isso há muito tempo e assumir essa luta como sua também. E é justamente por seu potencial socioambiental que o movimento merece atenção.
FEIRA Não podem chegar no campo com visão de colonizador...
ELAINE Sim, é isso. Essa é a questão. Vejo uma grande possibilidade de dignificação do rural por meio desses atores, dessas pessoas que estão migrando para produzir comida; desde que elas estejam sensibilizadas para isso. Há possibilidades de confronto, mas também de muito crescimento desde que se vá com uma consciência social e descolonizadora e um desejo de ouvir.
Pode acontecer um movimento muito interessante de revitalização do espaço rural, assim como pode acontecer de seus moradores reverem a importância de sua responsabilidade ambiental, por exemplo. Muitos rurais preservam seu ambiente, mas nem todos têm consciência disso e nem todos assumem práticas produtivas sustentáveis. Essa consciência ambiental pode ser mais uma troca interessante com os neorrurais que parecem chegar com propostas de cultivo e criação mais responsáveis.
O turismo rural também é uma prática que pode empoderar o espaço rural. Outro ponto importante a entender: o neorrural pode ter um lugar de fala mais visibilizado porque muitos são privilegiados e têm acesso a discussões políticas progressistas. Isso pode mudar muita coisa no âmbito das políticas de bem-estar e de apoio aos agricultores familiares produtores de comida.
A noção de soberania pode ser muito sublinhada. Ter a comida nas mãos, a possibilidade de produzir alimentos é um poder. O movimento pode trazer mais visibilidade para essa potência que o rural tem: produzir comida de qualidade para o mercado interno.
Não acredito que aqueles que migram vão querer levar consigo a experiência profunda da solidão urbana. Penso que há grandes chances de trocas afetivas e de um movimento cooperativo acontecer. E quando o urbano endossa, o próprio morador do meio rural pode passar a se ver de outra forma; o jovem rural pode mudar sua autoestima e sua visão de que o progresso está nas cidades. Isso porque o que vem do urbano ainda é supervalorizado na cultura contemporânea. Enfim, vejo um grande potencial de mudanças sociais e isso já é estudado em pesquisas sobre os impactos da Agroecologia e da Agricultura Familiar Orgânica.
Mas a verdade é que ainda não sabemos exatamente como essas coisas vão se desenrolar, por isso é tão interessante se debruçar sobre o assunto e pesquisar mais.
FEIRA Aproveitando que você fala nessa visão de que o progresso estaria nas cidades: nosso modelo de desenvolvimento urbano, que vem resultando em tremenda concentração demográfica nos grandes centro urbanos ao passo que esvazia e enfraquece o campo, lança à precariedade ou mesmo à exclusão muitos daqueles que migram para as metrópoles em busca de oportunidade. O movimento de êxodo urbano que vem se intensificando nos últimos anos pode colaborar para uma reversão dessa lógica?
ELAINE Mais uma vez, acho que a gente só pode supor algumas coisas enquanto esse processo de êxodo urbano não é pesquisado com mais rigor.
Acredito que essa transformação, a princípio de caráter mais identitário, pode trazer muitas mudanças estruturais paro o campo, transformar a visão das gentes do campo como atrasadas e o preconceito histórico com o “caipira”. Isso vem acontecendo na França, o empoderamento do camponês e de sua cultura. E tal movimento promoveu a valorização dos alimentos locais, a procura pelo vinho na região onde é produzido, dos queijos do terroir, do turismo rural e, como consequência, também das políticas públicas de apoio ao campesinato. Aqui, sem dúvida, acontece um processo semelhante: a revalorização do caipira que já vem acontecendo com a música, com a gastronomia; a revitalização de algumas áreas rurais. Mas em que dimensão esse movimento vai realmente resultar em um equilíbrio rural-urbano ou na reversão na lógica moderna de que o urbano é superior, não creio que alguém possa afirmar com precisão nesse momento. Até porque o neorruralismo não é o único elemento que problematiza o urbano nesse momento.
FEIRA Nos primeiros meses da pandemia de Covid-19, muito se falou na oportunidade de que ela inaugurasse um novo tempo. Houve quem arriscasse prever que a pandemia permitiria desnormalizar nossa tragédia cotidiana. Hoje, mais de dois anos depois, você acredita que esse acontecimento tenha jogado luz nos erros do nosso modelo de desenvolvimento urbano a ponto de nos fazer ir além de mudanças meramente superficiais e promover transformações mais profundas? Ou mesmo em novos cenários as engrenagens tendem a se reacomodar até o próximo susto?
ELAINE Eu percebo que, no Brasil, o processo e o impacto da pandemia se complexificou muito com um governo de extrema direita que contribuiu pra intensificar as repercussões sociais, econômicas e também ambientais decorrentes da crise sanitária. Então separar as coisas vai ser muito complicado.
No âmbito da saúde, por exemplo, percebemos um aumento no consumo de orgânicos ao mesmo tempo que os ultraprocessados cresceram e a fome se acirrou. Com a crise econômica e também política, fica muito difícil atribuir essas tendências somente a pandemia.
Mas eu ainda concordo com o filósofo Paul Preciado que a pandemia só intensificou as tendências individuais e coletivas pré-existentes, agindo como um catalisador. Ou seja, quem já tendia a fazer mudanças mais profundas no seu modo de vive e consumir está fazendo.
Quem era movido pela racionalidade do hiperconsumo e do desenvolvimentismo baseado no urbano e no industrial, manteve sua ideologia.
Agora, se essas tendências vão se reverter no cenário pós-pandemia, também é difícil afirmar. Ainda vivemos o que parece ser o final desse processo. Não sou muito otimista em assumir que o ser humano está realmente aprendendo algo com as crises que ele mesmo construiu. Afinal, as crises só se acumulam, não se resolvem, apesar dos inúmeros alertas de como minimizá-las, o que passa necessariamente por rever essa noção de desenvolvimento predatório e de questionar nossas práticas individuais e os sistemas que causaram as crises.
O próximo susto pode ser muito dramático, como alertam os especialistas em mudanças climáticas. Mas as escolhas dos nossos representantes políticos no Senado e nos governos estaduais no processo eleitoral de 2022 endossam que nós, brasileiros, não estamos fazendo muito para minimizar essas crises ou para mudar verdadeiramente esse panorama.