ENTREVISTA: CONSTANCE ESCOBAR
FOTO: SAMUEL ANTONINI
A confeiteira e engenheira de alimentos Joyce Galvão é autora do livro A Química dos Bolos e idealizadora do congresso Compartir, que visa discutir os caminhos da confeitaria no Brasil. Sua trajetória profissional e a experiência da realização de duas edições de Compartir conduzem-na a um engajamento cada vez maior nesta discussão, sem medo de se posicionar de forma crítica. É o que revela a FEIRA nesta entrevista.
FEIRA Um dos motivos que a levaram a criar o Compartir é o fato de os confeiteiros no Brasil serem profissionais pouco valorizados e a confeitaria ser tratada como uma espécie de segundo escalão no campo da gastronomia. De fato, é raro um restaurante brasileiro que dê à confeitaria o devido valor. A que você atribui isso?
JOYCE Eu me lembro de uma ocasião em que, numa conversa com cozinheiros, algumas sobremesas de restaurantes foram citadas, atribuídas aos chefs daqueles lugares e não aos confeiteiros que trabalhavam lá. O problema começa nos próprios chefs de cozinha ou donos de restaurantes que geralmente não mencionam os confeiteiros que trabalham com eles em seus estabelecimentos. São nomes que não aparecem. É como se a sobremesa fosse irrelevante.
FEIRA Mesmo aqueles que contratam um profissional especializado em confeitaria não dão a eles o merecido destaque? Seria uma questão de vaidade?
JOYCE Talvez. São poucos os que abrem espaço para que o confeiteiro brilhe. Mas o nome de um chef de cozinha não se faz sozinho. Há uma equipe por trás. É preciso falar também da questão da remuneração. Mesmo os chefs que querem ter um confeiteiro em sua cozinha, em geral, não estão dispostos a pagar bons
salários. Os salários são muito baixos. Ouvi de muitos confeiteiros que não teriam como pagar R$ 300,00 para se inscrever no Compartir porque ganham R$ 1.200,00 por mês. Trabalhando seis dias por semana, 12 horas por dia. Mas há muitos outros problemas que impedem nossa confeitaria de decolar.
FEIRA Por exemplo?
JOYCE Não temos uma indústria que nos atenda como deveria. Vou dar um exemplo: gelatina. Na Europa é possível encontrar gelatinas com vários tipos de bloom (poder de gelificação). Aqui temos apenas a gelatina caseira vendida nos supermercados. Outro exemplo é o fermento. Na França, são inúmeros tipos: um é melhor para madeleines, outro, para certos bolos. Com farinha acontece a mesma coisa: não temos farinhas que atendam a confeitaria diretamente. Além disso, é difícil encontrar empresas dispostas a patrocinar eventos que realmente propiciem a evolução da nossa confeitaria. A indústria quer estar presente, por exemplo, em eventos de bolos de pasta americana porque isso é popular, porque vende mais. Conseguir patrocínio para um evento como o Compartir é dificílimo.
FEIRA Como entender essa desvalorização da confeitaria num país como o Brasil, que é grande produtor e grande consumidor de açúcar?
JOYCE Grande parte das confeitarias que são inauguradas acabam fechando as portas. Historicamente, a produção de doces acaba ficando relegada a um ambiente doméstico, a uma coisa caseira. E ainda há a questão da culpa. O brasileiro relaciona o consumo do doce com culpa. Novamente vou falar da França, porque é um lugar onde esse setor está muito bem estruturado. Os franceses lotam as confeitarias e lidam com aquilo como prazer. Há moderação, eles entram e escolhem apenas uma sobremesa para o jantar, não precisam consumir em excesso, mas há prazer no hábito.
FEIRA E do ponto de vista histórico e cultural? Temos uma infinidade de doces em nosso receituário, muitas vezes conhecidos apenas regionalmente, às vezes nem isso. Receitas que jamais alcançaram a penetração do brigadeiro, por exemplo. O que realmente dificulta a construção de uma identidade na confeitaria brasileira que permita a ela alcance e permanência?
JOYCE Nos EUA, que são um país de dimensões continentais como o nosso, a Christina Tosi tornou o Milk Bar um caso de sucesso. Apesar de eu não apreciar o que ela faz, ela soube muito bem entender o público americano, o que eles querem, do que eles gostam. Independentemente de eu gostar ou não, tenho que admitir que a ideia de usar o fundo de leite que fica no bowl de cereais e transformar aquilo em um sorvete foi algo genial. Nós temos que entender o gosto do brasileiro. Não é fácil porque nosso povo adora modismos. Já copiamos muito a Europa, depois copiamos muito os EUA. Sempre tivemos esse olhar para fora. As pessoas insistem em fazer macarons, mesmo sabendo como é difícil ter bons resultados no nosso clima. A gente precisa entender do que o brasileiro gosta, independentemente do tamanho e da diversidade do nosso país. Dá para trabalhar as particularidades de cada lugar.
FEIRA Por que no Brasil é tão difícil consolidar comercialmente os ícones da nossa doçaria? Isso, em certa medida, parece que vem sendo alcançado na cozinha de restaurantes, mas, aparentemente, não vem sendo acompanhado na confeitaria...
JOYCE É muito difícil encontrar um confeiteiro que pense, reflita sobre isso. Em geral, as pessoas se limitam ao uso de certos ingredientes que têm alguma carga de brasilidade, mas isso, pra mim, não é o exercício de pensar. Veja um confeiteiro como Cédric Grolet, em Paris. Ele tem receitas autorais, mas, mesmo quando executa os clássicos afetivos, a técnica é excepcional. Talvez o grande problema no Brasil seja o fato de que nossa confeitaria não foi muito além dos limites da casa. Tudo é feito de um jeito muito intuitivo, muito empírico. Não temos muitas escolas de confeitaria de qualidade. Falta educação em confeitaria profissional. Sem base técnica e sem compreensão da nossa história e da nossa cultura, fica difícil pensar. Fazer um quindim não precisa ser apenas reproduzir a receita de um caderno. Eu posso me perguntar como fazer dele o melhor quindim. Mais açúcar? Menos açúcar? Mais gemas, menos gemas? Coco seco ou coco fresco? As pessoas não querem pensar. Quando escrevi A Química dos Bolos, eu não queria publicar receitas no livro, mas a editora não aprovou a ideia. Após a publicação, as pessoas começaram a me escrever, agradecendo e contando que estão reproduzindo e vendendo aqueles bolos porque as receitas funcionam. Mas o que eu queria era que as pessoas fossem além. A receita é apenas um exemplo, nada mais que isso.
FEIRA Pode-se, afinal, falar em confeitaria brasileira?
JOYCE Se existe uma confeitaria brasileira, se ela está no alfenim, na compota, por que nossos confeiteiros não fazem, não vendem? Certa vez dei uma entrevista a um jornal que acabou sendo publicada com o título “Não existe uma confeitaria brasileira”. Muitos profissionais me criticaram, perguntando o que seriam então nossas compotas, por exemplo. No entanto, muitos dos que me criticaram não fazem nem vendem compotas. Quando você vai olhar o que eles fazem, encontra éclair, macaron, entrémet. A gente não conhece e não usa o que é nosso. Os grandes eventos de confeitaria no Brasil ainda são aqueles que atraem para o que é comercial. Muitas pessoas não conseguem acompanhar o Compartir, preferem ir a eventos onde vão aprender a fazer bolo com glitter, porque isso elas conseguem reproduzir e vender com facilidade.
FEIRA Dá vontade de desistir?
JOYCE Realizar o Compartir não é fácil, já tive que botar dinheiro do meu bolso. Os colegas não ajudam a divulgar, é difícil o público se interessar, as empresas não querem patrocinar. Mas continuo achando que é importante esse espaço. Os profissionais precisam se falar, pensar juntos. Raramente um confeiteiro brasileiro é convidado a estar no palco de um congresso importante de gastronomia. Por isso o Compartir é necessário. Mas meu evento é apenas um, precisamos de muito mais. E não adianta todo mundo me agradecer, elogiar o evento e não me ajudar a fazer com que a próxima edição aconteça.