ENTREVISTA POR CONSTANCE ESCOBAR
FOTO: GUILLERMO WHITE

Ponto de Vista: Luiz Américo

O jornalista Luiz Américo Camargo, autor dos livros Pão Nosso e Direto ao Pão, é um dos mais importantes agentes da revalorização do pão de fermentação natural no Brasil. Apontado por muitos padeiros profissionais e amadores como referência nesse movimento, tem a argúcia e a lucidez dos bons observadores, o que lhe permite uma análise profunda do atual cenário da panificação no País. É o que revela a FEIRA nesta entrevista.

FEIRA O pão como era feito milhares de anos atrás vem passando por um processo de revalorização nos últimos anos – a ponto de ser às vezes curiosamente tratado como moda, tendência. O mundo tem testemunhado um movimento de evolução no padrão da panificação artesanal feita com fermentação natural, o que cedo ou tarde se reproduziria também no Brasil. Você identifica onde começou, quais foram os disparadores dessa “nova onda”? Muitos padeiros identificam a Tartine Bakery, de Chad Robertson, na origem desse movimento...

LUIZ Fico feliz que essa redescoberta tenha acontecido, e dando sinais de que o tema não é mera moda – pão é alimento essencial, tem lugar cativo; modismo é paleta mexicana. Penso  que a atenção com o pão esteja no contexto do interesse pelo artesanal, pela elaboração mais cuidadosa de certos produtos. Pela atenção aos processos, aos ingredientes, inclusive graças ao aumento de repertório das pessoas, às mudanças no nível de exigência. Não apenas para comer melhor e com mais prazer, mas porque,  levando essa prática para o universo da cozinha caseira, é mais barato, é um hobby muito legal, é algo que encanta, agrega as pessoas. Eu acho que isso vem de mais longe, ainda que Chad Robertson tenha muitíssimo a ver com o despertar para um estilo de panificação – e para um nicho específico de padeiros/futuros padeiros. Para mim, particularmente, vem  muito mais da família Poilâne. Eu já conhecia a fermentação natural da França, e mesmo de São Paulo, com as padarias italianas antigas. E fiquei ainda mais fascinado com o Primal Bread (Pão Primevo), texto de O Homem que Comeu de Tudo, publicado na virada do século  por Jeffrey Steingarten. No meu primeiro livro, o Pão Nosso, eu faço questão inclusive de reverenciar ambos: os italianos do nosso Bixiga (São Domingos, Basilicata) e Jeffrey Steingarten. No caso dos primeiros, pela mística, pela história, pela sensação (ainda  que eu não soubesse verbalizar) de comer um pão com estilo próprio, diferente dos produtos do cotidiano. No caso de Steingarten, por ver alguém mergulhando no tema e sabendo contar quão apaixonante era o processo.

FEIRA No Brasil, você é certamente um dos atores dessa transformação. Usando suas próprias palavras, você se tornou um importante “comunicador do pão”. Muito  antes do Pão Nosso, você já havia iniciado esse movimento em seu antigo blog no site do Paladar. Quando você se deu conta da importância de sua voz na construção desse processo coletivo de revalorização do pão?

LUIZ Eu gostava do assunto, fazia pão em casa, estava sempre em busca de uma dica, um livro, tentava assistir a uma aula aqui ou ali (não havia Google nem Youtube, lembremos). E, tempos depois, sempre que podia, escrevia a respeito, em meados/fim da década passada. Até que uma leitora perguntou se o fermento natural era um bicho, morria, mordia... o que era, afinal. E percebi que precisava tratar um pouco mais cuidadosamente do tema. Mais: promovi uma criação on-line de um fermento natural, pelo blog. Eu fazia no meu canto, as pessoas repetiam os passos em suas casas, íamos trocando ideias, tirando dúvidas. Foi uma surpresa, uma audiência absurda, no nível dos temas de hard news, com participação de pessoas de vários estados, até de outros países. Ali eu percebi que o assunto tinha força, potencial. Foram essas experiências, entre fermentos, receitas, dicas, que deram origem ao Pão Nosso. E foi graças àquela iniciativa que entraram em contato comigo padeiros que viraram mentores, amigos. De certa forma, acho que me tornei um canal para esse interesse difuso que havia no mercado brasileiro. Mas a pretensão era mesmo aquela: a de fazer um pão gostoso e cascudo em casa, e dividir isso com o público. Encorajar a turma a afundar a mão na massa, sem medo, sem tabus, sem reverências – embora com respeito.

FEIRA Lançando um olhar crítico sobre essa “nova onda do pão”, será que os pães produzidos nesta nova geração de padarias não se tornaram todos muito parecidos? A panificação não é um universo rico demais para que as pessoas se limitem a fazer, todas, um mesmo tipo de pão? Em muitos lugares fora do Brasil parecem surgir movimentos que começam a se distanciar dessa padronização, passando pelo resgate de grãos ancestrais, de receitas locais. Você vê isso como um movimento possível também aqui?

LUIZ Ah, não tenha dúvida, acontece isso. Acho até que faz parte do amadurecimento, das descobertas, do deslumbramento – o cenário evolui, mas é inevitável passar pelos exageros. Dando aulas, palestras, em contato com leitores pela rede, eu vejo como a busca pelo pão do Tartine Bread é importante para eles. Não tenho problemas com isso, cada qual deve procurar o que está com mais vontade de fazer. Mas a questão é quando começam achar que aquele é o pão “certo”, e os demais não prestam. Vira religião, fica restritivo. Todo mundo quer fazer aquele mesmo filão para cortar no meio e postar aquela foto clássica no Instagram, achando que fazer um bom pão depende disso. O pão é diverso, tem estilos, tem escolas. Fazer um pão como o “da capa” não depende de um fator, mas de uma cadeia: a escolha do ingrediente,  a hidratação, a manipulação, a técnica, os tempos, o forno... É maravilhoso, mas não é “O” pão. Sempre pergunto em minhas aulas: “Sabem a miche Poilâne, com centeio, farinha integral, apenas furinhos, SEM alvéolos gigantes? Está errada? Não. E os pães alemães, densos, com sementes, bem escuros... errados? Não. E o pobre do pão sírio, que nem alvéolo tem (ou, se preferir, tem só um, gigante),está errado? Não”. O pessoal se diverte, e acho que capta a mensagem. Pois a panificação tem variantes, tem possibilidades, e isso faz a beleza do ofício. Que pesquisem e treinem os pães que quiserem. Mas sem entrar nessa do pensamento único, do dogma – um ponto de vista que pode afetar não apenas o trabalho dos profissionais, mas as receitas dos amadores. De fato, penso que dispor de outras farinhas, de grãos antigos, de ingredientes menos usuais, usar sementes, buscar sabores  e tradições com uma identidade mais local, tudo isso pode ser um bom caminho para que os padeiros inclusive sintam mais segurança em criar outras trilhas de sabor, arriscar novas texturas. E para que entendam que é possível adaptar as receitas às suas condições, ao seu gosto. Mas alguma padronização, num certo momento, tem sido difícil de evitar, como um rito de passagem, talvez, inerente à descoberta da técnica, à idolatria dos padeiros-referência. Até que os artesãos encontrem uma voz própria.

FEIRA Continuando nessa linha: de modo geral, não percebo grande interesse dos novos padeiros brasileiros por receitas regionais, como broas e certos pães que se relacionam com o caldo de cultura das levas de imigrantes no Brasil. Haverá mais espaço para eles nos balcões das nossas modernas padarias no futuro? Ou tendem a ficar aprisionados nos seus nichos?

LUIZ Eu acho que haverá mais espaço. Gosto sempre de olhar em perspectiva, constatar a evolução ao longo dos anos. Trinta ou quarenta anos atrás, os restaurantes das grandes cidades, os mais gastronômicos, por assim dizer, eram franceses ou italianos, às vezes de carnes. De lá para cá, houve imensa fragmentação, diversificação, até que surgiram os espaços para que cozinheiros brasileiros – em estilos diferentes – pudessem se manifestar e conquistar clientes, projeção. Penso que, com o aumento da massa crítica (sem trocadilho – ou com, se preferir), com mais profissionais de boa formação, com uma clientela mais exigente e informada, será natural que os padeiros façam mergulhos em memórias, na regionalidade. Sustento a tese (ou a impressão) de que o Brasil, que consome cerca de 35 kg/pessoa de pão por ano, ainda vai elevar muito o seu interesse pelo pão. Mas jamais vai chegar ao nível chileno, de 100 kg/pessoa por ano. Especialmente porque temos pão de queijo, beijus, broas, alternativas muito gostosas ao pão de trigo – e note que elas estão cada vez mais presentes nas grandes cidades. Agora, dizer que há condições para um grande crescimento não quer dizer que essas receitas locais terão a popularidade do pão francês. Talvez elas tenham uma aceitação mais circunscrita, mais regional. Porém, com muito potencial de ir além do nicho.  Vai depender de um amadurecimento cultural, de pesquisas, tentativas, e de padeiros que produzam belas fornadas a partir dessas tradições – e saibam expressar seu apreço por elas. Quem sabe esses artesãos se animam a refazer receitas da sua infância, da sua cidade, com novas camadas de técnica e de informação?

FEIRA O pão francês é de fato o mais presente em grande parte das casas brasileiras. É possível que os bons pães de fermentação natural venham a disputar espaço com o pãozinho francês em nossas mesas? Para além da questão cultural, o custo da produção permitiria essa democratização?

LUIZ O pão francês é o do dia a dia, o de combate, aquele que se come no balcão da padoca ou no lanche da tarde, em casa. E, fora o hábito e o afeto, o preço conta definitivamente. Ele acaba se inserindo num lugar que provavelmente o pão de fermentação não ocupará – embora não poucos já tenham transformado o pain au levain no seu alimento cotidiano, comprando um filão grande e consumindo fatia a fatia. Mas seu custo de fato pesa para que o alcance seja em escala realmente grande. Porém, eu tenho gostado de observar que coisas interessantes acontecem pelo outro lado dessa questão: padeiros que tentam elevar a qualidade do pão francês. Dou como exemplo a Fabrique, que já tem duas lojas em São Paulo, fazendo fermentação natural de muito boa qualidade, mas sem descuidar de seu pãozinho, que é bem acima da média.

FEIRA Ainda falando sobre democratização dos pães de fermentação natural, isso passaria pela evolução da qualidade de nossa produção de farinha, no sentido de baratear custos? Você acredita na possibilidade de a farinha brasileira vir a competir com boas farinhas estrangeiras, como a francesa e a italiana? Alguns padeiros têm exaltado trabalhos feitos exclusivamente com farinhas brasileiras orgânicas, enquanto outros dizem que é impossível comparar. Já temos lastro para uma panificação de qualidade, feita exclusivamente com farinha brasileira?

LUIZ Com relação a farinhas, sou sempre a favor de tentarmos o melhor com o ingrediente possível. E, como consumidores, de sermos também exigentes para que o fabricante  melhore a qualidade do insumo. Penso que, sim, podemos fazer ótimos pães com as farinhas nacionais, e com algumas tipo 1, mesmo, para quem não tem acesso às orgânicas e às produzidas em lotes mais selecionados. Acima de tudo, defendo que conheçamos as farinhas. Fazendo uma analogia com carnes: músculo nunca será bife ancho e, se eu tentar assá-lo numa grelha, não vai render um churrasco dos melhores. Porém, se eu souber usá-lo para uma sopa, para uma carne de panela, com cozimentos longos, ficará muito bom. Portanto, talvez eu não consiga resultados muito interessantes buscando hidratações, maturações e extrações de sabor que caberiam melhor a farinhas italianas e francesas. Contudo, acho que há espaço para buscarmos produtos de excelência com insumos produzidos aqui. A questão não está em apenas comparar, mas compreender as potencialidades das alternativas de que dispomos.

FEIRA Por que caminhos nossa panificação ainda precisa e pode evoluir? O que ainda nos falta em termos de matéria-prima, mão de obra, conhecimento e cultura? Para onde aponta o futuro da panificação no Brasil?

LUIZ Bom, sabemos que um único elo não fecha a cadeia sozinho. Nesse caso, no circuito do pão, estamos falando de produtores de matérias-primas, artesãos, comerciantes, formadores de opinião, professores, alunos, consumidores. É preciso que todos evoluam juntos no processo, criando, formando, informando,   consumindo. Eu acho que um primeiro degrau foi escalado. Já tem grande pão no Brasil, vivemos uma época interessantíssima, com padeiros de enorme talento – o que seria, mal comparando, nossa alta gastronomia. Falta agora o acesso, os produtos a preços melhores, a difusão. Vejo, aqui em São Paulo, lugares como  Fabrique e St Chico tentando fazer ótimos produtos com preço mais baixo, tentando romper uma barreira importante (o bolso) para o alcance do pão de qualidade. Este é o caminho que eu defenderia como primordial. E acho ainda, dentro de um contexto de muitas ações simultâneas e paralelas, que o mercado começa a perceber que o padeiro precisa ser valorizado (um boulanger, na França, tem status de chef). Falta, então, as escolas de gastronomia estenderem seus módulos de panificação, atualizando-os, aprofundando-os. E é preciso que os cursos de formação mais técnica saiam da visão preguiçosa (e conveniente para a grande indústria) do uso da pré-mistura, do pão padronizado, para um estudo mais consciente de técnicas e fermentação. Nisso, o papel do público, cobrando, exigindo, recusando produtos ruins, é essencial. Da minha parte, continuo buscando estimular todo mundo a fazer pão. Um pão caseiro, de fermentação natural ou biológica, será sempre melhor do que um industrial de baixa qualidade. Em sabor, em valor nutricional, em perspectiva de vida.

Nesta edição
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