Texto: Constance Escobar
Colaboração: Thiago Nasser
Fotos: Samuel Antonini

Rio de costas pro mar

Praia de Copacabana, Posto 6, pouco antes das oito da manhã. Pequenos barcos da comunidade de pescadores do bairro começam a chegar do mar, trazendo a pesca do dia: corvina, pescada, olho-de-cão. Seria natural presumir que, dali a poucas horas, boa parte desta pesca estaria nas mesas dos muitos bares e restaurantes na orla, mas não é o que acontece. Igualmente razoável seria a presunção de que parte considerável destes pescados seria destinada à vizinha Peixaria Z-13, cuja localização inclusive induz a uma associação com aquela colônia. Novamente, resposta errada.

A quilômetros dali, em Itaipu, Niterói, a perplexidade se repete. Quem chega cedo à praia que abriga uma das mais tradicionais comunidades de pesca do estado do Rio de Janeiro tem grandes chances de testemunhar o espetáculo do regresso dos barcos e sua retirada do mar por uma caravana de homens, cena encarnada com a dramaticidade de uma procissão. Com os olhos devidamente alimentados, o espectador poderia nutrir a pretensão de, horas depois, saciar necessidades mais primárias: acomodar-se num dos bares debruçados sobre a areia e matar a fome destrinchando alguns dos peixes recém-chegados. Seria lógico. Contudo, em se tratando da cadeia do peixe no Rio de Janeiro, nada é o que parece.

Na maior parte das mesas da cidade, não é curto o caminho percorrido pelos pescados servidos. Raramente são adquiridos diretamente de pescadores, mesmo quando se trata de estabelecimentos vizinhos às comunidades de pesca artesanal, que, embora respirem por aparelhos, ainda resistem. Cozinheiros e donos de restaurantes quase sempre compram por meio de atravessadores, e, mesmo quando se dirigem pessoalmente a grandes mercados e centros de abastecimento, como o CEASA, em Irajá, e o Mercado de Peixe São Pedro, em Niterói, geralmente desconhecem a procedência do que compram – assim como o tempo decorrido desde a pesca. Peixes vendidos como “do dia” dificilmente são da mesma semana; às vezes, não são nem do mesmo mês.

Quanto mais fazemos perguntas a respeito do assunto, mais nos convencemos de que não há respostas rápidas nem soluções fáceis. Nossa única certeza é a de que uma abordagem simplista não daria conta da imensa complexidade que permeia este percurso que se inicia no mar e se encerra no seu prato.

NOS BASTIDORES DAS COZINHAS

Que alternativas tem o cozinheiro que não aceita sucumbir à precariedade desta conjuntura?

Rafa Costa e Silva, chef e sócio do Lasai, defensor ferrenho da relação direta entre cozinheiros e pequenos produtores, nos conta das dificuldades enfrentadas na busca de uma relação de confiança com fornecedores de pescados em seu restaurante.

Ao retornar ao Brasil após uma temporada no País Basco espanhol, tinha a expectativa de reproduzir aqui o que fazia lá: a compra direta. Rapidamente entendeu que não seria fácil. “Na Espanha, saí algumas vezes com pescadores pra pescar merluza. Antes de o barco voltar, eles já anunciavam pelo rádio o que tinham e selecionavam por tamanho. Ao chegar, descarregavam, e o fiscal dizia o preço, aí começava o leilão. Era muito organizado e limpo. Logo que voltei ao Rio, estive algumas vezes na chegada de barcos na Ilha da Conceição, em Niterói. Nunca vi gelo lá, mas vi peixe fedendo, gatos comendo peixe, e pescadores não muito dispostos a vender pra mim”, relata.

O chef passou, então, a visitar comunidades de pesca artesanal. Logo começou a comprar na colônia de Copacabana, que, segundo ele, é a que tem as melhores condições entre aquelas que visitou na cidade, embora reconheça que o produto não é ideal. “Confesso que compro até mais pra ajudá-los, porque a verdade é que os peixes não são excepcionais. Estão sempre frescos, vêm de perto, mas em barcos pequenos, onde não há gelo. Já aconteceu de fazerem entrega de bicicleta no verão, em saco sem gelo, num calor de 40 graus. Entendo que é o que eles podem fazer. É um peixe muito bom, acima da média, mas não é bem cuidado.”

Para Rafa, a melhora das condições nas colônias demanda apoio do Estado, e passa não apenas por investimento material, mas por educação e treinamento: “Quando cheguei, eu era muito mais radical. Antes de abrir o Lasai, não queria lidar com intermediários, mas percebi que isso não é possível. Não temos pesca artesanal suficientemente boa. Falta educação, falta apoio do governo. Mesmo que esse apoio viesse hoje, os pescadores precisariam ser preparados pra recebê-lo”.

Nos peixes trazidos por mergulhadores que praticam pesca esportiva, o chef encontrou qualidade consideravelmente superior: “Eles trazem alguns excepcionais, de alto-mar, e sabem conservar bem, mas fazem isso por hobby, não como meio de sustento”.

Condições ideais só conseguiu ao conhecer Antonio Carlos Amaral, armador de pesca, proprietário de barcos que zarpam no Rio Grande do Sul, cujo produto afirma ser o melhor que se pode encontrar no Brasil: “O maior diferencial do Amaral é o transbordo. O peixe sai do mar direto pra um contêiner cheio de água e gelo, morre na hora, depois vai pra um isopor limpo, organizado com camadas alternadas de gelo. Esse isopor fechado é levado imediatamente em um segundo barco, em vez de ficar ali por dias ou semanas até que aquele primeiro volte para a costa. O pescado não passa pelas mãos de mais ninguém e não perde a cadeia de frio, que não deveria ser cortada nunca. Mas aqui é cortada muitas vezes, especialmente em restaurantes grandes, que servem muita gente. Supermercado, então, nem se fala”.

Um produto como esse, naturalmente, tem preço mais elevado e nem sempre os chefs e restaurateurs estiveram dispostos a pagar. Segundo Amaral, Rafa foi o primeiro a comprar com ele no Rio de Janeiro e se tornou um grande divulgador de seu trabalho. “Muitos chefs não queriam comprar porque o peixe melhor é mais caro, e vem sujo, tem que limpar, tem cozinheiro que não quer fazer isso. Hoje, muita gente compra comigo, mas, alguns anos atrás, ninguém no Brasil queria pagar o que ele vale. Na Europa, é claro que também querem preço baixo, mas, se você não tiver padrão de qualidade, eles não aceitam nem de graça. Essa é a diferença”, dispara.

Alberto Landgraf, sócio do recém-inaugurado Oteque, cujo cardápio é em grande parte dedicado a peixes e frutos do mar, reitera os elogios a Amaral. Ao se mudar de São Paulo para o Rio de Janeiro, o chef tinha noção das dificuldades que enfrentaria na cidade, mas ainda assim se surpreendeu: “A maior diferença de São Paulo, em relação ao Rio, é a presença da colônia de imigrantes japoneses. O alto consumo de peixes por esses imigrantes fez com que se criasse uma cadeia pra atender essas famílias. No Rio, não é fácil encontrar bom peixe nem pra fazer em casa”.

Já conhecedor do trabalho de Amaral, não teve dúvida de que a construção de uma relação com ele seria o melhor caminho para garantir matéria-prima de qualidade superior na cozinha de seu restaurante. “Eu já havia trabalhado com Amaral no Epice, em São Paulo, e hoje ele fornece todos os pescados que usamos no Oteque. Faz um excelente trabalho de ensino de manipulação, considerando a fragilidade do produto. O segredo é esse manuseio”, conta.

O chef fez muitas visitas à colônia de Copacabana, mas logo entendeu que não haveria regularidade e padrão: “Percebi que às vezes o peixe não vem bem acondicionado no barco, ou fica muito tempo no sol. Já comprei muitas vezes pra fazer em casa. É uma loteria: às vezes chega bom, às vezes não. Não tenho dúvida de que estão sempre frescos, vieram do mar há pouco tempo, mas muitas vezes chegam destruídos por causa do manuseio. Esse é o grande problema. Pra um restaurante que queira manter alto padrão de trabalho com pescados, fica difícil. Mas, para o consumidor final, acho que é o melhor lugar pra comprar na zona sul do Rio”.

Embora a matéria-prima usada em seu restaurante não venha das colônias, Alberto compreende a importância de sua existência e se preocupa com sua viabilidade. “Meu pai é agricultor e trabalhou muito no campo pra que eu não precisasse ser agricultor. Infelizmente, a cultura na pesca também é essa: trabalhar muito pra que o filho tenha outras oportunidades e não precise ser pescador. Isso é triste. A mudança poderia acontecer a partir de uma demanda do mercado, mas é muito difícil”.

Ele vislumbra no consumo local a possível salvação das comunidades de pesca e considera o envolvimento do consumidor final nesta cadeia tão fundamental quanto os incentivos econômicos. “Hoje o público já tem certa noção do que é bom peixe. Mas não faz muito tempo que as famílias brasileiras passaram a comer fora com mais frequência, é tudo muito novo ainda, vai demorar. Não consigo ter uma visão clara de como vamos chegar a isso, mas, pra mudar esse cenário, há muito a ser feito, não adianta só discurso. Conheço muito cozinheiro que grita contra o uso de agrotóxico nas redes sociais, mas não compra orgânicos em seu restaurante. Com peixe é a mesma coisa. Não adianta só falar, tem que fazer diferente.”

A REALIDADE NAS COMUNIDADES DE PESCA ARTESANAL

Não são apenas chefs e consumidores que precisam se alinhar na defesa de uma cadeia local para garantir a pesca artesanal e, consequentemente, a oferta de peixe de qualidade. O Estado exerce papel fundamental, na medida em que é responsável pela administração de recursos naturais e suas políticas públicas traçam os incentivos e desincentivos que moldam cada cadeia de produção.

Ao longo das últimas décadas, a Baía de Guanabara tem sido cenário de diversas intervenções que revelam a agenda estabelecida pelo Poder Público, refletindo suas prioridades, bem como sua desarticulação. É impossível desatrelar a realidade das comunidades de pesca artesanal deste contexto.

Façamos um rápido sobrevoo histórico. No século XVII, a Coroa Portuguesa passou a regular a pesca baleeira, atividade econômica de vulto à época, cujo resquício se vê ainda em muitas construções da Zona Portuária da cidade. A Fazenda Real assumiu o monopólio para coletar impostos e distribuir “contratos de baleias”, dando exclusividade de pesca em determinadas zonas a quem fizesse o arremate. Após a independência, a Marinha, com a salvaguarda da soberania em mente, formou as colônias de pescadores, cujas delimitações em zonas persiste até hoje.

No século XX, o foco das agências estatais responsáveis pela pesca se voltou para o fomento de uma indústria pesqueira dentro de um paradigma do mar como fonte inesgotável de recursos. Nos anos 1980, o Rio de Janeiro chegou a ter a segunda indústria pesqueira mais pujante do Brasil, atrás apenas da de Santa Catarina. No século XXI, veio o rescaldo das crises ambientais, e o IBAMA e outras agências passaram a se envolver na gestão dos recursos pesqueiros, colocando em prática políticas de conservação (defeso, zonas de proteção ambiental, classificação de espécies ameaçadas por sobrepesca).

Em monografia apresentada à Faculdade de Oceanografia da UERJ, Davi Henrique Rodrigues não apenas detalha esse panorama, como ressalta que, a despeito da importância da atividade pesqueira na região, a voz do pescador artesanal foi quase inaudível em todos estes momentos.

Talvez o incidente mais emblemático e consequente tenha sido a transferência do entreposto pesqueiro da Praça XV, no centro do Rio de Janeiro, para o CEASA, em Irajá. A localização da Praça XV era considerada ideal: de fácil acesso (pescadores de toda a baía poderiam desembarcar diretamente lá) e próxima ao mercado consumidor, o que garantia bons preços. A transferência seria provisória e aconteceu sob a promessa de construção de um novo entreposto, o que, no entanto, jamais aconteceu. Desde então, para vender seu produto no CEASA, o pescador passou a depender da utilização de caros veículos frigoríficos. Atravessadores assumiram essa função.

O apoio do Estado e a criação de formas compartilhadas de gestão seriam alguns dos possíveis caminhos para interromper a progressiva marginalização destes profissionais. De modo geral, a condição atual das comunidades de pesca, outrora vibrantes, é de empobrecimento crescente e desalento.

Para entender de perto esse cenário, visitamos três delas, em pontos distintos da Baía de Guanabara: Copacabana, Ilha do Governador e Itaipu. Encontramos muitos problemas em comum.

FALTA DE INFRAESTRUTURA

Uma das queixas gerais, a escassez de recursos para investimento em infraestrutura dificulta o escoamento da produção para peixarias, restaurantes e mesmo para os consumidores finais. Em geral, não há gelo para o acondicionamento dos pescados nem veículos voltados para seu transporte. A organização de um cadastro de compradores parece sonho distante.

Tais circunstâncias estão entre os muitos fatores que permeiam o enfraquecimento da pesca artesanal. Evidenciam também uma questão menos visível, que é a degradação cultural, como observa Jairo Augusto da Silva, da comunidade de Itaipu: “Antigamente, os pescadores tinham métodos tradicionais de armazenamento. Havia o cuidado de evitar o sereno, assim como o de evitar o contato com a água quente. Usavam a vegetação pra acondicionar e manter o frescor do peixe, sem exposição ao sol. Do meu ponto de vista, as coisas pioraram porque se perderam os métodos tradicionais e, por outro lado, não temos estrutura pra modernizar essas práticas”.

CONCORRÊNCIA

A falta de investimento no armazenamento e no transporte dos pescados não é a única circunstância a dificultar o escoamento do produto da pesca artesanal. São muitos os fatores a fragilizar estas comunidades diante de concorrentes mais poderosos.

O surgimento de peixarias em supermercados é apontado de forma recorrente como um dos principais causadores da queda na quantidade de compradores. “As peixarias de supermercado prejudicaram muito nossa venda. Elas não vendem peixe de boa qualidade, mas muita gente, pra não ter trabalho de vir até aqui, aproveita que está no mercado e compra lá mesmo, ainda que não seja fresco”, lamenta o pescador Carlos Eduardo, da colônia de Copacabana.

Jairo corrobora a queixa: “Além de tudo, a gente não tem delivery, não tem máquina de cartão de crédito, aí fica mais difícil competir. A gente vai ter que se modernizar”.

A concorrência pelo filão dos bares e restaurantes não é mais fácil. Mauro Sousa Freitas e Robson Dutra Santos, ambos, assim como Jairo, descendentes de fundadores da comunidade de pesca em Itaipu, advertem: “Se você comer peixe num desses bares aqui na praia, há grandes chances de não ser nosso. Eles compram muito no Mercado São Pedro, que vende mais barato que nós, mas é peixe que já tem quinze, vinte dias”.

Carlos Eduardo é ainda mais categórico: “Tem uma meia dúzia de restaurantes da orla de Copacabana que compra com a gente, mas a maioria trabalha com pescado congelado. Muitos não querem ter trabalho de limpar, querem tudo limpo e empacotado, mesmo que esteja congelado há um mês”.

DEMANDA POR PEIXES "NOBRES"

De modo geral, as escolhas de peixarias, bares e restaurantes traduzem um mercado que está de costas para a cadeia produtiva da pesca. A ânsia de satisfazer o público leva à busca incessante por peixes ditos nobres, ainda que sejam menos frescos e de pior qualidade do que aqueles oriundos da pesca artesanal, considerados “populares”.

Sobre o assunto, Carlos Eduardo é enfático: “Geralmente, dono de restaurante não quer qualquer pescado. Corvina, por exemplo, nenhum deles compra. A peixaria aqui da colônia do Posto 6 também não compra muito com a gente, porque não tem interesse em peixe barato. A gente está em Copacabana, a clientela da classe alta gosta de coisa boa: badejo, cherne. E gostam de entrega, né? Então preferem a peixaria, em vez de comprar nos nossos boxes. Não vou dizer que não tem produto fresco ali, até tem. Mas, em geral, não é como o nosso, que veio do mar no mesmo dia”.

O oceanógrafo Davi Rodrigues não esconde sua indignação: “Ninguém quer esses pescados mais baratos. O pessoal na Zona Sul quer atum, salmão. Salmão é uma praga, cheio de corante, hormônio de crescimento. E ainda temos uma política nacional de importação, que não valoriza a cadeia produtiva local”.

POLUIÇÃO

Especialmente na comunidade que visitamos na Ilha do Governador, nos deparamos com um problema que acelera a agonia da pesca artesanal: a poluição da Baía de Guanabara. Embora Copacabana e Itaipu estejam na área de abrangência da baía, situam-se em suas extremidades e são caracterizadas pela pesca oceânica. Comunidades situadas no interior da baía, como é o caso da Ilha do Governador, sofrem mais com a poluição.

O crescimento urbano desordenado e a crescente industrialização da área, em que se destaca a ocupação pela indústria do petróleo, responsável por vazamentos de óleo naquelas águas, vêm expulsando os pescadores das áreas tradicionalmente destinadas à pesca.

“A tragédia da baía está diretamente relacionada à indústria do petróleo. A produção da pesca artesanal em seu interior caiu cerca de 90% depois do vazamento de óleo em janeiro de 2000. Ainda hoje há óleo nos manguezais. O impacto foi tão brutal que houve um empobrecimento enorme. A maior prova disso são as residências e embarcações dos pescadores: a maioria está caindo aos pedaços. Chega a dar dó”, constata Sérgio Ricardo de Lima, ambientalista e um dos fundadores do Movimento Baía Viva.

Segundo relatos dos entrevistados, após o vazamento de óleo em 2000, muitos pescadores venderam suas casas e se tornaram pedreiros, garçons e camelôs. Esse abandono fragiliza ainda mais uma economia de grande relevância, inclusive para a preservação da cultura local.

Além dos vazamentos, as comunidades lidam com a crescente restrição da área disponível para pesca. “Por causa do pré-sal, do estacionamento de navios, diminuiu muito a superfície da baía disponível pra pesca. Muito virou área de exclusão. O pior é que grande parte das instalações está exatamente em cima dos pesqueiros, áreas de atuação da pesca artesanal. A prioridade é o petróleo, o pescador não foi levado em conta. Chega a ser perverso”, desabafa Sérgio.

Geraldo de Jesus Paiva, mais conhecido como Geraldão, liderança na comunidade do Zumbi, ao lado da Colônia Z-10, fala do passado com nostalgia e não alimenta esperança a respeito do futuro: “Eu pescava no rio Jequiá com meu pai, aqui sempre foi canteiro de peixe e marisco. Olha como está esse rio hoje. No mangue tinha sururu, ostra. Não tem mais nada, está tudo cheio de óleo. Eu acho que a pesca artesanal vai acabar na Baía de Guanabara. Tem dia que só vem lixo na nossa rede. Tem sofá velho, aparece até televisão. Dá pra montar uma casa, mas peixe não tem mais, não”.

OFÍCIO AMEAÇADO?

Do empobrecimento dos pescadores à corrosão de sua autoestima, não são poucos os sintomas da falta de uma política séria voltada para a pesca no estado do Rio de Janeiro – a ausência de estatísticas pesqueiras evidencia o tamanho dessa omissão. Entre as consequências disso, talvez a mais grave seja a descontinuidade do ofício, que leva as comunidades de pesca artesanal à ameaça de extinção.

Em todos os lugares por onde passamos durante as pesquisas para esta reportagem, observamos que aqueles ainda em atuação planejam um futuro diferente para seus filhos. De forma unânime, anunciam uma sinistra previsão: seriam a última geração da pesca artesanal no Rio de Janeiro.

Em Copacabana, Carlos Eduardo acredita neste prognóstico: “Sou nascido e criado aqui. Meu avô era pescador, foi um dos fundadores da comunidade. Minha mãe era pescadora, meus tios, também. Mas está cada vez mais difícil viver só disso. Não quero isso para os meus filhos. Já foi bom, não é mais. Hoje só ganha dinheiro com a pesca quem tem barco grande, pesca industrial”.

Na Ilha do Governador, Geraldão engrossa o coro: “Sou filho e neto de pescadores, mas não quis que meus filhos ficassem na pesca. Vejo a degradação que está acontecendo. Temos que ir cada vez mais longe pra trazer uma quantidade de peixe cada vez menor. A profissão está sendo abandonada porque não vale mais a pena”.

Em Itaipu, não é diferente. Jairo da Silva, mais uma vez, alerta para o impacto cultural dessas mudanças: “Eu, Maurinho e Robinho somos pilares da história da pesca em Itaipu, estamos conectados com gerações anteriores que fundaram essa comunidade. A pesca não é só atividade econômica, é cultura. O conhecimento que a gente carrega é enorme. Mas somos os últimos, nossos filhos e sobrinhos já estão trabalhando em outras áreas”.

Aureliano Matos de Souza, conhecido como Cambuci, também nascido naquela comunidade e tido como referência entre seus pares, não é mais otimista que os colegas: “Pra sobreviver desse tipo de pesca, a pessoa tem que ter muita coragem e tem que gostar muito. Sou feliz aqui, quis essa vida. Se eu vivesse novamente, queria voltar pescador. Mas não vou dizer pro meu filho que o futuro vai ser melhor, porque não é verdade. Vai ser pior. A pesca artesanal não vai acabar amanhã, mas a tendência é acabar”.

Nesta edição
BACALHAU, O REI
Uma perspectiva histórica do consumo do peixe que é predileção mundial
D’ALGA
Produção de algas marinhas em ambiente controlado
FORA DA LATA
Sardinhas em conserva: degustação e receitas
CHÂTEAU RICHEUX
A cozinha corsária de Olivier Roellinger