TEXTO: THIAGO NASSER
FOTOS: SAMUEL ANTONINI

Tem mel na Ilha Grande

Embora a pele morena e os olhos levemente puxados sugiram linhagem caiçara, André Luiz Brito Trindade nasceu e cresceu em Madureira, Zona Norte do Rio de Janeiro, tendo se instalado com a esposa na Ilha Grande 20 anos atrás. Na praia do Saco do Céu, onde moradias simples compartilham a paisagem com hotéis de luxo, o carioca, que já foi dono de restaurante japonês, mantém a Bee Point, projeto que funde educação ambiental com a criação de jataís, mandaçaias, uruçus-amarelas e tubunas, todas espécies de abelhas nativas.

Presentes em regiões tropicais e subtropicais no mundo inteiro, mas com intensidade e diversidade marcantes nas Américas Central e do Sul, as abelhas da subfamília Meliponinae não possuem ferrão, diferentemente daquelas da espécie Apis mellifera – que mais comumente identificamos como “abelhas” e que são responsáveis pela produção do que nosso mercado reconhece como mel.

No entanto, muito antes da importação de melíferas ou da introdução do cultivo da cana-de-açúcar pelos colonizadores, o mel de nossas abelhas nativas adoçava o paladar dos habitantes deste território que veio a se  chamar Brasil. Um indígena certamente sabia reconhecer num oco de tronco o esconderijo de uma colônia de jataís, de onde poderia extrair energia antes de prosseguir em suas caminhadas. Hoje, moradores de cidades grandes como o Rio de Janeiro passam por elas corriqueiramente sem serem capazes deste reconhecimento – muitas  vezes as identificam como inimigos a serem abatidos, sem desconfiar que não podem ferroar.

Na condição de meliponicultor – como são chamados os criadores destas abelhas –, o reencontro de André Luiz com suas raízes não se limita à mudança de código postal. Ele personifica um amplo movimento de ativistas ambientais, produtores artesanais e gastrônomos, que nos últimos anos têm avançado a passos largos, ainda que pouco alardeados, no sentido de resgatar, preservar e melhor conhecer as mais de 200 variedades identificadas no Brasil – que, como seus nomes indígenas atestam, faziam parte do repertório dos habitantes primeiros da nossa terra. Elas coexistem em simbiose com as matas, e seu mel possui características organolépticas que vão desde a mais cítrica acidez até o dulçor intenso. Apesar disso, até pouco tempo atrás, os únicos meles disponíveis nas prateleiras de nossos supermercados e mercearias, especialmente fora das regiões Norte e Nordeste, eram os oriundos da Apis mellifera, tão brasileira quanto o Mickey Mouse.

POR QUE SÓ APIS?

Em busca de compreender os motivos desta desconexão, conversamos com integrantes da entidade que tem André Luiz como um de seus membros, a Associação de Meliponicultores do Rio de Janeiro – AME-RIO. Entre seus associados há pessoas de diversas profissões, que encaram a criação de abelhas nativas sobretudo como hobby, além de mote para educação ambiental – a associação mantém caixas com colmeias em diversos parques da cidade.

Segundo Luiz Alberto Medina, da AME-RIO, as abelhas nativas, salvo alguns relatos, não teriam chegado a ser efetivamente domesticadas pelos índios. Com o tempo, a meliponicultura teria se desenvolvido à medida que alguns povos tradicionais combinaram técnicas de domesticação com o conhecimento assimilado dos indígenas. No entanto, o consumo de seu mel se limitou ao de subsistência. Isso se deveria, em parte, à dificuldade de conservação do mel extraído destas abelhas, cujo índice de umidade é de cerca de 27 a 30%. Em contato com leveduras e micróbios nele presentes, o mel pode fermentar, tornando-se mais ácido ou mesmo impróprio para consumo.

A este fator se alia uma legislação que por muito tempo manteve o produto à margem da comercialização. “Assim como a abelha apis foi importada, o mesmo aconteceu com a legislação. Por exemplo, ao definir o que é mel, menciona o limite de até 23% de umidade. O que estiver acima disso não é considerado mel”, diz Medina, lembrando ainda o fato de que, por serem consideradas pertencentes à fauna silvestre, as abelhas nativas têm sua criação regulada pelo Ibama, que impõe ao criador um limite de 49 colmeias. Para ultrapassar esse número, é preciso observar toda a burocracia que desincentiva a produção em escala.

Sem a chancela da lei, as abelhas nativas chegaram ao século XXI como mero objeto de hobby em grande parte do Brasil, sendo seu mel produzido na clandestinidade e comercializado em pequena escala. A maior produção se concentra em estados do Norte e do Nordeste, onde há a cultura de consumo deste produto.

ABELHAS GENUINAMENTE BRASILEIRAS

Muitas vezes espera-se o prenúncio de uma tragédia para um ajuste de foco e comportamento. O tom alarmante de notícias que dão conta do  risco iminente de um colapso das populações de abelhas, cujo desaparecimento comprometeria a agricultura e os ecossistemas, tem cumprido esse papel. No caso do Brasil, Jerônimo Villas-Boas é o principal proponente do manejo sustentável de algumas espécies como solução de curto prazo diante dos sinais de colapso. O ecólogo é autor de um manual que sistematiza a produção e o beneficiamento do mel de abelhas nativas e defensor do papel da gastronomia como ferramenta para “gerar renda e promover identidade cultural” para produtores artesanais em todas as regiões. A introdução destes meles como ingredientes nas cozinhas de restaurantes em evidência tem de fato contribuído para o surgimento de um mercado para o produto, em que se destacam empresas como a MBEE, sediada em Atibaia, São Paulo.

Segundo Eugênio Basile, sócio da MBEE, além da visibilidade conferida ao produto por cozinheiros nos últimos anos, ao menos dois outros fatores têm fortalecido sua atuação. O trabalho com cooperativas e produtores de todo o País permite escala e estabilidade no fornecimento. Concomitantemente, uma mudança legislativa veio flexibilizar a circulação dos produtos artesanais de origem animal: em respeito às suas peculiaridades e características regionais, a Lei 13.680/2018 retirou do Mapa – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – a fiscalização destes produtos, franqueando-a a órgãos estaduais. Paralelamente, estados como São Paulo e Paraná já criaram leis específicas regulando as formas de produção e beneficiamento de mel de abelhas nativas. Especialistas consideram que estas leis criam um paradigma para a produção em escala comercial em outros estados no futuro.

No Rio de Janeiro, embora a AME-RIO conte com número considerável de associados e organize periodicamente concursos de meles de abelhas nativas, ainda são poucos os produtores com potencial de produção em escala comercial – André Luiz, da Bee Point, é um dos poucos, mas sua produção ainda se encontra em fase incipiente.

A origem de sua atuação nesta área está profundamente ligada ao ecossistema da região onde se instalou há duas décadas. Em 2017, com um projeto de defesa das abelhas como polinizadoras da vegetação local e agentes de reflorestamento, ele foi contemplado com recursos de um programa de gestão ambiental da Secretaria de Estado do Ambiente (SEA) e da Organização das Nações Unidas (FAO-ONU), o BIG 2050.

Seu conhecimento sobre o assunto era escasso. Além da lembrança das colmeias de melíferas que o pai criava como hobby, ele contava apenas com a observação da relação de extrativismo dos nativos da ilha com as abelhas: “O caiçara às vezes tomava o mel de jataí que encontrava nos troncos. Alguns entenderam que, se cuidassem delas, uma ou duas vezes por ano poderiam ter aquele mel”, conta. O hábito de resgatar jataís que entravam nas caixas de luz ou isopores de pesca de vizinhos aos poucos evoluiu, no sentido do aproveitamento do mel, de forma menos esporádica.

Buscou aprendizado por meio de cursos e da aproximação de uma ampla rede de meliponicultores de todas as partes do País, que se conectam por aplicativos de mensagem. O ponto de inflexão viria com o curso ministrado por Maria Cristina Lorenzon, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e especialista da área. “Desde aquele curso, eu me lasquei”, brinca a respeito do momento da “picada”. O fascínio pelas abelhas seria então um caminho sem volta.

A visita à propriedade onde estão distribuídas suas melgueiras torna palpável esse fascínio. Cercadas por vegetação nativa e variedades selecionadas por suas floradas (como café e alguns cítricos), bem como pelo auxílio à proteção natural ao vento, as caixas de abelhas nativas não revelam de imediato atrativo especial, mas cada uma delas encerra um universo.

A organização social das colônias não difere muito do que conhecemos sobre abelhas europeias – rainhas, operárias, guardiãs e campistas, que se lançam na natureza em busca de nova morada quando a colmeia chega ao limiar da superpopulação. O que impressiona são suas técnicas de construção barrocas. Ao contrário dos monótonos e fordistas hexágonos as suas congêneres estrangeiras, as nativas constroem pequenos monumentos gaudianos, numa espécie de modernismo arquitetônico que mistura formas primitivas e futuristas. E cada uma possui estilo particular – muitas podem ser identificadas, por exemplo, pelo tipo de “entrada” que constroem para suas colmeias.

Estas técnicas se desenvolveram como artifícios de dissimulação. Diferentemente da Apis mellifera, com seu ferrão, o principal mecanismo defensivo e evolutivo das nativas foi sua sagacidade em se infiltrar em troncos ocos e outras reentrâncias, o que André Luiz chama de “malandragem”, cedendo à inevitável tentação de identificá-las como abelhas genuinamente brasileiras.

Em que pese a eventual malemolência delas, viabilizar sua produção em escala comercial requer planejamento e disciplina implacáveis, o que explica o rigor com que o meliponicultor cataloga e monitora suas melgueiras – 80, atualmente. Seu foco neste momento consiste em compreender os hábitos de cada espécie e  avaliar seu potencial produtivo. “O último passo do meliponário será a casa do mel, levando as melgueiras para ambiente fechado, com melhor controle de contaminação, para fazer a extração e o beneficiamento”, meta que ele projeta para o segundo semestre de 2019 e que permitirá a comercialização do mel e de outros subprodutos, ainda que em pequena escala. Por ora, a venda só está disponível para os visitantes do sítio.

O mel de abelhas da Ilha Grande ostenta ainda a vantagem de ser produzido longe de regiões de produção agrícola intensiva. “Se for feito um exame nesse mel, não se vai achar fungicida, pesticida, agrotóxico, porque no raio de ação dessas abelhas não há nada disso. É muito diferente, por exemplo, de um mel de laranjeira que foi tirado num laranjal que não seja de cultivo orgânico”, reflete o produtor.

Toda a complexidade daquele trabalho se materializa nas nuances de sabor reveladas no produto final. Extraído minutos antes da prova, o mel de mandaçaia que experimentamos ao fim da visita, era intensamente doce, mas, ao mesmo tempo, cítrico. “Quanto à textura do mel, tem muito a ver com a abelha; já o sabor está mais relacionado à florada”, ensinou.

Enquanto buscava em vão precisar a infinidade de variáveis daquele terroir, considerando a diversidade da fauna e da flora locais, André Luiz, por outro lado, assumia sua precária humanidade diante de um universo fascinante a ser desvendado: “Acho que alguns dos maiores desafios já conseguimos vencer. Sigo desbravando. Estou no escuro, com a lanterna fraca, tentando enxergar alguma coisa, mas é muito gratificante”.

 

BEE POINT
Rua da Praia, casa 10
Enseada das Estrelas – Saco do Céu – Ilha Grande
Agendamento de visitas:
trindadedive@gmail.com
ou +55 24 99815-4802

Nesta edição
SIM, NÓS TEMOS MAIS QUE BANANAS
O cultivo de frutas nativas no Sítio do Bello,em Paraibuna, e seu uso na produção da sorveteria Vero, no Rio de Janeiro
BURROW
O artesanato de Ayako Kurokawa em sua confeitaria no Brooklyn
PONTO DE VISTA: JOYCE GALVÃO
Em entrevista, o olhar crítico e inconformista da confeiteira Joyce Galvão
COM AÇÚCAR, SEM AFETO
Os porquês de a confeitaria ainda ser relegada a um segundo escalão da gastronomia no Brasil