TEXTO: EDUARDO TRISTÃO GIRÃO
FOTOS: NANI RODRIGUES
Não é só na canção de Noel Rosa e Vadico que um pão bem quente pede manteiga à beça. A complementaridade entre os dois alimentos se manifesta de diferentes formas em diversas culturas por todo o mundo. No Brasil não é diferente. No entanto, aqui o recente milagre da multiplicação do bom pão artesanal nem sempre tem sido acompanhado de manteiga à altura. Encontrar bons produtores ainda requer muitas buscas.
Presenciar o nascimento de uma manteiga feita literalmente com as mãos é das coisas mais belas que existem dentro de uma cozinha. Há algo de brutal na montanha de creme que precisa ser dilapidada, espremida, reunida repetidas vezes até que o ponto seja encontrado. O leitelho vai sendo expulso à medida que o aperta-aperta transforma o colosso de gordura animal. Algum cheiro de queijo no ar. Mais palmadas sonoras, mais banho de água gelada, a acidez diminui, a consistência firma e, de repente, o sal entra em cena. Está pronta.
Uma de nossas melhores manteigas artesanais é feita assim por um produtor que, pasme, não possui fazenda, vacas ou cozinha própria. Diego Fernandes Martins, criador da Caseirinho, se considera um cigano. Aos 34 anos, o paulistano nascido em São Carlos vive quase à deriva, batendo manteiga onde é chamado. Se tem creme, ele tem trabalho. O produto pode nascer em praticamente qualquer lugar: basta colocar no porta-malas do carro o aparato, que tem uma desnatadeira como item mais volumoso. Com o creme em mãos, num par de horas se come manteiga soberba.
Ele é a terceira geração de sua família a se dedicar aos lácteos. O avô aprendeu com um italiano a fazer parmesão na Serra da Canastra, tendo seu pai como ajudante. Curiosamente, eles também trabalhavam de maneira itinerante: “Em toda cidade onde paravam, faziam queijos. Os de massa filada foram os que melhor se adaptaram a essa condição. Muçarela, provolone, provola, cabaça”, lembra.
Aos 12 anos, fez seu primeiro queijo sob o olhar do pai. Passou a acompanhá-lo aonde quer que fosse, mas sua trajetória no universo do leite esteve perto de tomar outro rumo. “Meu pai pagava a mensalidade da faculdade de publicidade para mim, pois não queria que eu fosse queijeiro. Quanto ao restante das despesas, eu me virava vendendo o queijo que fazia. Parei por conta do estágio, fui contratado por uma agência. Mas deu saudade. Tinha mais prazer em ir para o sítio fazer queijo do que em levantar de manhã para trabalhar com publicidade. Então, seis anos atrás, deixei o emprego e resolvi ser queijeiro”, conta. Diego ainda não sonhava em fazer manteiga.
Como ele não tinha certificação do produto e não se falava tanto em queijo artesanal por onde andava, teve de iniciar duro trabalho de formiguinha com a freguesia. “Eu sabia que teria que educar o consumidor, pois o custo do queijo artesanal é mais alto. Não dá para competir com a indústria”, reflete.
Sua sorte mudou quando decidiu fazer curso na loja A Queijaria, em São Paulo, onde foi convidado a vender seus produtos numa feira de rua. Na época, passou a produzir manteiga exclusivamente com a finalidade de cobrir os custos do queijo. Aprendeu a fazer com o pai, que sempre lhe dizia que dava muito trabalho e pouco retorno. “Ela pagava a gasolina”, confessa. Era apresentada numa condição abaixo do que se poderia considerar “despretensiosa”: em um pote de sorvete.
Um dos primeiros a provar sua manteiga foi o chef Rodrigo Oliveira, do restaurante paulistano Mocotó. “Rodrigo levou meu queijo e minha manteiga para a cozinha e já foi usando. Elogiou, sugeriu uns ajustes e falou que a manteiga era animal”, recorda. Foi Rodrigo quem primeiro lhe falou sobre Pepe Saya, libanês radicado na Austrália, especialista em produtos lácteos, sobretudo em manteiga fermentada.
Manteigas fermentadas são um universo inteiramente diferente daquilo que costumamos ver nas gôndolas de supermercados e padarias. Trata-se de produtos únicos em razão da presença natural de bactérias do ácido lático no leite (e, por consequência, no creme) ou pela inoculação (diretamente no creme) de culturas bacterianas selecionadas. Como acontece com o pão de fermentação natural, é a ação desses micro-organismos que torna o sabor do produto final mais complexo, geralmente mais ácido ou picante. São manteigas vivas.
Para entender melhor esse universo, Diego entrou em contato com Pepe. “Ele me falou que eu estava num caminho legal e que não havia muita bibliografia, era tudo na base de erro e acerto mesmo. Naquela época, minha manteiga já era um pouco fermentada, mas eu não me dava conta disso. Tinha que juntar creme para conseguir produzir e percebia que ela ficava um pouquinho mais forte, mas não tinha consciência de que isso traria valor ao produto. A fermentação dá característica e identidade à manteiga”, observa.
Além de deixar o creme fermentar por mais tempo e fazê-lo de maneira consciente, o produtor passou a promover outros ajustes na receita, como substituir o sal refinado por flor de sal. E adotou a embalagem em papel manteiga, também inspirada no trabalho de Pepe. Não demorou para que o produto chegasse às mesas de restaurantes.
Consolidar essa produção, no caso dele, não é tarefa das mais simples. Como não tem fazenda nem vacas, ele ajunta creme dos leites que compra em São Carlos e região, incluindo o das vacas do tio José Vicente Lourenço. Além disso, o creme que usa não vem diretamente do leite, mas do soro que resta da produção dos seus queijos de massa filada – ou seja, ele não desnata o leite, mas o soro, que ainda contém considerável quantidade de gordura. Por fim, obtém soro em dois momentos: primeiro, quando escorre a massa já coagulada, depois, quando fila a massa em água quente; embora misture os cremes, percebe que o primeiro é o mais fermentado.
“Reúno cremes de cinco a dez dias, sempre misturando o último com o primeiro. Passo pela desnatadeira para ter um creme mais consistente e depois é que bato à mão e lavo com água gelada para reduzir a acidez. Vou triturando para retirar umidade, sentindo quando ela para de grudar. É quando dá o ponto. Tem creme que demora mais, tem creme que demora menos. O ambiente precisa estar na temperatura certa. Uma série de fatores influenciam”, explica.
Diego conta que o pai sabia que a manteiga produzida por ele mesmo era fermentada (embora isso não fosse intencional), mas que não enxergava nessa característica um diferencial. Hoje, acredita que, se extrair creme do leite em vez do soro, não terá produto tão especial. “A maioria das manteigas não passa por fermentação. Me lembro de sempre perceber diferença e sentir falta disso. Ela tem a acidez um pouco diferente e tem gente que sente sabor de queijo”, afirma.
A opção pela manteiga de soro significa aproveitamento de um subproduto da elaboração do queijo que seria descartado e, ao mesmo tempo, obtenção de um produto final mais nobre e complexo. Não raro, os produtores parceiros guardam para ele o soro que seria destinado (cheio de preciosa gordura) aos porcos.
Vivendo atualmente como uma espécie de “cigano dos lácteos”, Diego estuda ocupar a queijaria ociosa perto de São Carlos, mas sem abandonar as viagens para produção itinerante, que, afinal, ajudam a difundir a cultura manteigueira num país onde isso ainda é muito incipiente. Além de acreditar que o interesse no tema é crescente por aqui, inspira-se na trajetória iniciada pelo avô e continuada pelo pai, sempre sem fazenda ou animais: “Faço queijo e manteiga de teimoso”.
CASEIRINHO
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