TEXTO: CONSTANCE ESCOBAR
FOTOS: SAMUEL ANTONINI
“Tenho que admitir que estou meio nervoso. É que confeiteiro não está acostumado a dar entrevista.” A frase de Henrique Rossanelli ao receber a equipe de FEIRA diz muito sobre o status de sua profissão no Brasil.
Como disciplina, a confeitaria é pouco presente nos currículos dos cursos de gastronomia no País: em geral, a carga horária destinada ao lado doce da cozinha não seria suficiente sequer para a formação de base. Quem desejar complementar este aprendizado além dos cursos de graduação terá dificuldade em encontrar boas escolas especializadas.
Como profissão, é pouco atraente: confeiteiros dificilmente conseguem posições de relevo alcançadas por cozinheiros. A maior parte de nossos restaurantes nem mesmo conta com profissionais de confeitaria – em matéria de sobremesa, prevalece o improviso, como se se tratasse de um capítulo menos importante nos cardápios. Entre os profissionais que se destacaram e abriram seus próprios negócios, muitos acabaram fechando as portas.
Afinal, em um país que é grande produtor e consumidor de açúcar, como explicar o paradoxo de o brasileiro relegar a confeitaria a um segundo escalão na gastronomia?
Nossa equipe atravessou meses ouvindo cozinheiros, confeiteiros, professores, pesquisadores, jornalistas e outros formadores de opinião, propondo reflexões que nos parecem indispensáveis a esse debate.
OFÍCIO SUBVALORIZADO?
A análise da grade curricular nas escolas de gastronomia no Brasil revela que são destinados à disciplina de confeitaria menos de 10% da carga horária dos respectivos cursos. É assim nas filiais da Universidade Estácio de Sá (onde, do total de 1.997 horas, apenas 182 são destinadas à disciplina intitulada “Panificação e Confeitaria”), na Univali, em Santa Catarina (onde tais disciplinas representam somente 195 das 2.760 horas da grade curricular) e na Universidade de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul (onde Confeitaria Básica e Confeitaria Avançada somam apenas 120 de um total de 2.000 horas). Nos programas oferecidos nas instituições integrantes da rede internacional Laureate (entre elas, o Centro Universitário IBMR, no Rio de Janeiro, e a Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo), a situação não é diferente: à disciplina “Confeitaria” são destinadas 66 de um total de 1.827 horas.
Heloísa Rodrigues, confeiteira e coordenadora do curso da Anhembi Morumbi, não vê a baixa carga horária necessariamente como pouco apreço à disciplina: “Os cursos de gastronomia são mais generalistas, contemplam muitos assuntos importantes para o profissional de gastronomia. Como na medicina, aqueles que quiserem se especializar terão que buscar um curso específico na área”, reflete a professora, que se qualificou em confeitaria no Culinary Institute of America, nos Estados Unidos.
No âmbito da especialização, não é propriamente abundante a oferta de cursos no Brasil. Há exceções, como a Universidade de Caxias do Sul, que dispõe de um programa voltado à confeitaria e panificação, ou algumas instituições da rede Laureate, que oferecem pós-graduação também em confeitaria e panificação: Anhembi Morumbi (São Paulo), FPB (Paraíba), UNP (Natal) e UNIFG (Recife). Em um país de dimensões continentais, ainda são exatamente isso: exceções.
A oferta se ampliou com a chegada do Le Cordon Bleu ao Brasil em 2018. No entanto, os preços dos cursos impõem vultoso investimento, inversamente proporcional à projeção profissional e à média salarial com que os especialistas costumam se deparar ao ingressar no mercado de trabalho.
Saiko Izawa, professora na filial paulistana da escola francesa, é enfática quanto à realidade do mercado: “Confeiteiros em restaurantes não têm plano de carreira, o que é desanimador. Um cozinheiro 1 às vezes ganha mais do que um confeiteiro. Sabemos que nunca teremos o mesmo tratamento de um chef de cozinha nessa cadeia. Cozinheiros costumam achar que podem fazer sobremesa, mas não é assim. Confeitaria é uma opção e demanda qualificação. O confeiteiro não é um cozinheiro frustrado. Trata-se de uma escolha”.
A trajetória de Saiko se destaca neste cenário como ponto fora da curva. Depois de passar anos produzindo por encomenda receitas de seu Japão natal, o primeiro emprego como confeiteira na cozinha de um restaurante brasileiro aconteceu no DOM, de Alex Atala, com quem trabalhou por dois anos e meio. De lá seguiu para o Attimo, a convite do chef Jefferson Rueda, parceria que se manteve no restaurante que Rueda inauguraria em seguida, A Casa do Porco. Juntos desenvolveram também o conceito da Sorveteria do Centro, inaugurada em 2018 no Centro de São Paulo.
Poucos meses depois da inauguração, a parceria se encerraria, mas a confeiteira reconhece a importância da longevidade desta relação: “Como trabalhei muito tempo com um mesmo chef, que me dava liberdade de criação, a autoria das sobremesas se tornou conhecida, meu nome se consolidou. Em geral, os confeiteiros não ficam tanto tempo em um mesmo lugar, o que também dificulta essa consolidação”.
Outro profissional que alcançou rara projeção como confeiteiro no cenário da restauração é Henrique Rossanelli, que acaba de assumir a operação do Lilia Café, depois de atuar por três anos no restaurante Oro, no Rio de Janeiro. Henrique é categórico: “No Brasil, o confeiteiro não costuma ter reconhecimento. São poucos os que têm chance de trabalhar em restaurantes. Encontrar sobremesa com cara de sobremesa e olhar de confeiteiro é coisa rara. Na maior parte dos restaurantes de alta gama, elas são feitas por cozinheiros, não foram pensadas como sobremesa. Não faz sentido você comer um menu degustação incrível, e o desfecho não ser tão bom. O que faz todo sentido é haver um especialista que se encarregue dessa etapa da refeição e que seja reconhecido por isso”.
Ambos admitem ser exceções em um mercado que não costuma ser generoso com os profissionais da área. É o que pontua também Flavio Federico, um de nossos mais respeitados confeiteiros, que hoje comanda a Academia de Confeitaria Flavio Federico, em São Paulo: “Nos grandes restaurantes, mesmo nos estrelados, não costuma haver um responsável pela confeitaria. Quem faz a sobremesa é o próprio cozinheiro. Mesmo que não saiba fazer, não quer contratar alguém para dividir a fama com ele. Ninguém quer dividir os louros. Esse é um dos motivos pelos quais saí do mercado. Não queria me preocupar com ego, vaidade, quero apenas me dedicar a fazer o que eu gosto”.
Essa desvalorização não é fenômeno recente em nossa sociedade. Tem raízes culturais profundas, que os olhos já não alcançam. É preciso escavar para entender.
BARREIRAS CULTURAIS
Câmara Cascudo aponta caminhos para essa reflexão em História da Alimentação no Brasil, em que observa que nem mesmo os pasteleiros da corte tinham renome, tendo sido a confeitaria tradicionalmente uma atividade íntima, pertencente ao campo das prendas domésticas:
“Pelo interior e nas capitais das províncias as famílias forneciam-se reciprocamente os doces e bolos para as festas habituais. (...) Até a primeira década do século XX rara seria a cidade possuindo uma confeitaria- pastelaria. (...) A praxe era fazer, ‘fiz com minhas mãos!’ Doce comprado não presta. Indispensável a destinação certa e não a indeterminação humilhante e anônima, o direito de qualquer pessoa comprar e comer. Essas tarefas constantemente mantiveram a tradição dos bolos e doces de casa, primores das meninas, enlevo das velhas donas.”
Vê-se que a prevalência do empirismo na execução dos clássicos de nossa doçaria bem como seu aprisionamento no ambiente doméstico são questões com as quais lidamos historicamente e que nos acompanham ainda hoje.
A palestra da doutora em antropologia social Paula Pinto e Silva na segunda edição do congresso Compartir, em 2018, ia ao encontro desta reflexão, ao lembrar que nossa confeitaria ocupa historicamente o lugar do conhecimento feminino, desenrolando-se no ambiente da casa: “A doçaria é historicamente doméstica, conhecimento transmitido de forma oral entre mães e filhas. Era assunto de mulheres. Dependendo do segmento social, é a única coisa permitida e incentivada a uma mulher na cozinha. Em certas classes, não é de bom tom a mulher cozinhar, haverá alguém para fazer isso por ela – empregadas, cozinheiras. Havia uma hierarquia, inclusive quanto ao uso de ingredientes: a dona da casa podia usar ingredientes nobres na produção de doces finos na cozinha de dentro, a cozinha limpa, enquanto a escrava ficava na cozinha de fora, na produção de conservas e doces de tacho, que não têm receitas ou medidas precisas e exigem força bruta”.
De fato, a confeitaria no Brasil parece submeter-se a uma espécie de estratificação ainda mais rigorosa do que a que eventualmente marca a cozinha. Fronteiras quase imóveis separam receitas elegíveis a um consumo dito mais refinado daquelas que ficam relegadas à cozinha de casa. Algumas delas chegam, quando muito, aos tabuleiros de vendedores de rua, como se não estivessem autorizadas a pleitear um lugar nas prateleiras do comércio formal ou nas mesas de um restaurante.
Isso pode causar perplexidade a profissionais oriundos de outras culturas, como nos adverte a confeiteira Saiko Izawa: “Quando se fala de doces brasileiros populares, as pessoas têm noção de quanto custam os ingredientes e, em geral, não estão dispostas a pagar caro por essas receitas na prateleira de uma loja ou num restaurante famoso. Um macaron pode custar oito reais, mas uma broinha não pode, mesmo que seja feita com o melhor fubá. No Japão, por exemplo, é diferente: tem choux cream vendido a um dólar na estação de metrô, mas há confeitarias refinadas que vendem a preço oito vezes maior. E há público para as duas coisas. Aqui me parece um pouco mais difícil acontecer isso. Por enquanto, acho que só o brigadeiro conseguiu ocupar esse lugar”.
Voltando a Paula Pinto e Silva, a antropóloga faz um diagnóstico preciso: “Comida também é um marcador de diferenças sociais, reproduz desigualdades. Num contexto como o nosso, em que a diferença social é fundante, isso é inegável: ‘o que ele come eu não como’. Nossa sociedade não quer quebrar isso”.
Idealizadora do projeto CATA – Cultura Alimentar Tradicional Amazônica – e cozinheira à frente do ponto de cultura Iacitatá, em Belém, Tainá Marajoara, uma das mais poderosas vozes no cenário da cultura alimentar brasileira, engrossa esse coro: “A comida aqui é utilizada para diferenciar classe social, para distinguir o patrão do empregado, o rico do pobre, o branco do povo de matriz africana, o civilizado do dito indígena não civilizado. São estigmas sociais que vão para o prato”.
Desconstruir estes estigmas requer dos confeiteiros brasileiros não apenas coragem e qualificação, mas algum conhecimento de sua própria cultura e do gosto do povo ao qual pertencem.
O BRASIL NÃO CONHECE O BRASIL
Beijus, pamonhas, canjicas, bolos de goma, manuês, broas e compotas ilustram o receituário brasileiro, particularmente pernambucano, que Gilberto Freyre sentiu necessidade de inventariar em Açúcar, obra publicada em 1939.
Nas páginas de A culinária caipira da Paulistânia, livro de Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos, publicado em 2018, beijus, pamonhas, canjicas, broas, curaus, biscoitos e bolinhos surgem como símbolos de uma “cozinha que teima em desaparecer”.
Quase 80 anos separam as duas obras e não são poucas as diferenças entre elas: além de não se restringirem à doçaria e de se debruçarem sobre um recorte geográfico distinto do explorado pelo autor pernambucano, Dória e Bastos lançam um olhar mais generoso e profundo à diversidade de referências que confluem para nossa formação, em contraste à visão eurocêntrica de Freyre. Mas em ambas é possível identificar o desejo do encontro com o que há de nosso em uma cultura culinária da qual ainda não soubemos (não quisemos?) nos apropriar na construção de nossa identidade.
Falam de um país que parece distante demais de nossos confeiteiros – ainda mais do que de nossos cozinheiros.
Não se trata de defender que confeitarias se transformem em museus. Mas, para que se aponte um futuro e se especule uma evolução acerca de nossas referências, em busca de compreendê-las, atualizá-las e dotá-las de legibilidade no contexto do gosto brasileiro, parece fundamental, antes de tudo, conhecê-las e criar pontes entre elas.
Foi o que sustentou a professora Lúcia Soares em sua apresentação na última edição do congresso Compartir: “Técnica é importante, mas falta conhecimento. Conhecer o contexto da nossa confeitaria é fundamental para o rumo que vamos dar a ela. Essa tomada de consciênciaé importante para nos direcionar. Para onde queremos ir? Queremos continuar reproduzindo doces estrangeiros? Ou vamos pesquisar o que é a nossa cozinha? Só acredito no futuro da nossa confeitaria se a gente se debruçar sobre isso, estudar. E não basta conhecer, é preciso atualizar esse repertório”.
Neste sentido e ainda de forma mais aguerrida se levanta a voz de Tainá Marajoara: “O colonialismo é um grande inimigo do raciocínio. A falta de identificação com as práticas e os saberes do seu próprio território, no anseio de acreditar naquilo que vem de fora como algo superior, acaba aniquilando culturas. E nos impede de ter estética própria, base técnica própria, ciência própria. A subalternização do conhecimento e um complexo de inferioridade, em que preciso, como cozinheiro, acreditar que, para ser alguém competente, tenho que raciocinar e submeter minha prática local à prática europeia provoca atrocidades”.
A paraense, que jamais utiliza açúcar branco em seus bolos e sobremesas, dá preferência à rapadura, ao melaço de cana e aos meles. No cardápio do Iacitatá, propõe sobremesas como queijo do Marajó com melaço de cana, pupunha com mel de uruçu, banana com cacau e pimenta, doce de cupuaçu com farinha d’água e bolos adoçados com rapadura. Nos fins de semana, seu “café da manhã descolonial” traz produtos como mandioca, cupuaçu, cacau e castanha-do- pará em receitas como mingaus, bolos e beijus.
“Já recebi chefs que dizem que meu bolo precisa melhorar porque tem gosto de rapadura. Por que o açúcar branco tem que ser a referência? E os meles de frutas? E os preparos à base de mel e de fermentados? E os mingaus? Isso não nos foi trazido em um navio escravocrata europeu. O sabor doce não existe apenas a partir do açúcar. Temos castanhas, oleaginosas, mandioca, frutas, meles como referência de gosto doce. Acontece que isso vem de antes de nos chamarmos Brasil. E o próprio Brasil não se reconhece como país nesse território”, dispara.
Ainda que por outro viés, a importância do senso de pertencimento permeia também a fala de Flavio Federico, para quem a evolução de uma confeitaria nacional depende de entendermos quem somos: “O maior problema é o confeiteiro que se forma e quer montar um negócio como o que ele viu no exterior. Nós temos nosso jeito de consumir. Não acho que dê para querer mudar isso. Por que toda festa tem brigadeiro? Porque a gente ama brigadeiro. E não falo isso de forma pejorativa, é a nossa cultura. O que falta é o brasileiro valorizar seu produto sem invencionice. Acredito muito na confeitaria brasileira. Falta alguém se interessar em fazer isso, em vez de pegar um canelé de Bordeaux e fazer com cupuaçu, ou pegar um cannolo siciliano e fazer com jaca. Temos que dar valor ao que é nosso, parar de achar que bacana é só o que vem de fora”.
Não há um caminho único para essa consolidação de identidade. A multiplicidade de um país como o Brasil certamente comporta diversos caminhos. O que, no entanto, não nos impede de almejar o fortalecimento de ícones em que possamos nos reconhecer e quiçá sermos reconhecidos para além de nossas fronteiras.
O sociólogo Carlos Alberto Dória soa incrédulo a respeito da possibilidade de construção de uma identidade nacional para nossa confeitaria: “A cozinha burguesa é universal, repete- se no mundo todo. As cozinhas populares, ao contrário, são locais. O Brasil tem muitas delas, que não se comunicam entre si. Só passam a se comunicar quando integram o repertório da cozinha burguesa. Se olhamos o caso da Itália, vemos que elas não se unificaram até hoje. Nós também não teremos uma ‘cozinha nacional’ no sentido amplo. O nacionalismo não pertence ao domínio da culinária. Os chefs modernos, como os chefs nacionalistas mais antigos, fazem um exercício inútil culinariamente. Nenhum átomo de indigenismo ou negritude subsiste à cocção”.
Já o jornalista e crítico gastronômico Luiz Américo Camargo, atento observador da evolução da cena gastronômica do Brasil nas últimas décadas, vê com otimismo esse processo: “Do mesmo modo que, partindo de culinárias regionais, estamos construindo uma gastronomia brasileira, poderemos no futuro falar também numa doçaria nacional. Ainda não chegamos nesse ponto. Temos receitas, temos produtos, temos tradições... Ainda é preciso uma marcha a mais, talvez duas, para que entremos numa nova fase. Todas as culturas têm e sempre terão a necessidade de se verem refletidas em sua língua, suas pessoas, suas paisagens, sua realidade. É uma questão de afirmação, um impulso quase vital. Eu penso que isso acontecerá com nossa doçaria”.
Américo reconhece que não se trata de um percurso fácil e pontua as muitas tarefas que ainda precisamos cumprir – revisar nossos clássicos repensando o açúcar, conhecer melhor nossas frutas, entender nossos biomas, incorporar com naturalidade as levas migratórias –, mas esta não lhe parece uma meta inalcançável.
“Do mesmo modo que, há mais de 20 anos, precisamos que alguns chefs empunhassem o estandarte do Brasil com mais veemência, como Mara Salles, Paulo Martins, Alex Atala, para que uma nova geração fosse mais espontânea e naturalmente brasileira, sem conflitos com o que vem do exterior, mas muito à vontade com seus sabores natais, acho que teremos de dar o tempo para que os confeiteiros tenham o seu estalo, as suas epifanias, e comecem a produzir suas sobremesas com um sotaque mais local e, quem sabe, com uma gramática nacional.”