TEXTO: CONSTANCE ESCOBAR
FOTOS: SAMUEL ANTONINI

Sim, nós temos mais que bananas

Uvaia, cambucá, cabeludinha, jaracatiá, araçá, grumixama, feijoa, cambuci, cereja-do-rio-grande. Quantas destas frutas nativas do Brasil você conhece? Provavelmente, poucas. Douglas Bello também não conhecia a maioria delas quando, no começo dos anos 2000, comprou uma propriedade em Paraibuna, São Paulo,  onde viria a desenvolver o projeto batizado Sítio do Bello. Hoje, estas são apenas algumas das muitas variedades que cultiva na área de dez hectares.

No terreno devastado pelo primeiro ciclo do café, Douglas desejava aliar produtividade à meta de reflorestamento. Sem qualquer referência de manejo agroflorestal naquelas circunstâncias, vislumbrou no plantio de frutas um caminho: “Comecei a pesquisar frutas do Brasil, mas o plantio foi aleatório, porque não tínhamos conhecimento. Algumas coisas deram certo, outras, não. Nossa experiência foi toda empírica, tudo tentativa e erro. Não havia um manual que me dissesse que fazia sentido plantar baru perto de feijoa, ou araçá-boi ao lado de pitanga, por exemplo”.

Ao longo dos anos, a experiência evidenciou o que a intuição apontava: o cultivo de frutas se revelaria uma boa alternativa para reflorestar: “Entre os extremos da monocultura e da mata intocada, existe todo um universo. Descobrimos que faz sentido reflorestar com frutas, cujo plantio é uma  espécie de acelerador desse processo. Parece óbvio, mas ainda não está tão claro para a Academia. Como a fruta é alimento para os  animais, eles acabam dispersando sementes, e o reflorestamento acontece mais rápido. Se por um lado tenho uma fonte de renda, por outro esse sistema funciona bem para a fauna, para o solo e para o clima”.

Ainda que essa não fosse sua intenção inicial, Douglas encontrou na gastronomia um mercado promissor. Embora entre seus grandes clientes estejam, por exemplo, empresas da indústria cosmética, ao longo dos anos, o sítio encontrou seu maior potencial junto aos cozinheiros – público que hoje desperta maior interesse no produtor. “É muito curioso poder apresentar aos chefs de cozinha frutas que eles não conhecem. São tantas as variedades no Brasil e, no entanto, o que se produz em  grande escala ainda se resume a meia dúzia delas. Dentro dessa meia dúzia, cerca de 75% se limitam à banana, à laranja e ao caju.”

Ele lamenta que a agricultura no País seja pautada quase exclusivamente pela urgência de alta produtividade: “Cambucá, por exemplo, ninguém conhece. É endêmica da Mata Atlântica, uma parente da jabuticaba, só que o fruto bem conduzido chega quase ao tamanho de um limão. Imagina isso com sabor ainda mais  interessante que o da jabuticaba. Dizem que até a década de 1960 ainda se achava nas feiras do Rio de Janeiro. O problema é que é uma árvore lenta, começa a produzir com quase 20 anos. Hoje, ninguém mais quer esperar esse tempo, as pessoas querem as coisas pra ontem. Por isso se tornou uma árvore ameaçada de extinção”.

Douglas alimenta o sonho de ver esse potencial mapeado pelo diálogo entre a culinária e a engenharia de alimentos. Cozinheiros e confeiteiros tendem a concordar com ele: ainda é limitado o uso que fazemos de nossas frutas, são muitas as possibilidades inexploradas. A confeiteira Joyce Galvão, que é também graduada em engenharia de alimentos, compartilha do anseio do produtor: “Já conversei com o Bello sobre um projeto que tenho em mente, gostaria de fazer livretos contando a história de cada fruta, falando sobre o pico de acidez, sobre como pode ser usada quando verde, o melhor uso quando madura. É preciso usar nossas frutas de maneira inteligente, ir além de só fazer geleia”.

VERO: GELATO ITALIANO, SABORES TROPICAIS

Sobre a pesquisa de frutas nativas, o sociólogo Carlos Alberto Dória é um tanto cético, confessa que lhe parece mais motivada por razões ideológicas do que propriamente culinárias: “Veja, até hoje nem conseguimos domesticar o bacuri, que a Rainha Vitória já dizia ser a melhor fruta do mundo! Daí não sai confeitaria”.

A descrença, contudo, se relativiza quando o assunto é a produção de sorvetes no País: “A única coisa que tenho visto com grande vigor no presente é a sorveteria de frutos brasileiros. É realmente boa e dinâmica. Faz-se nos grandes centros, mas também no interior longínquo. Ponho fé nela. Pode ser um elemento  distintivo da nossa culinária, pode ser gastronômico, é um capítulo da confeitaria”.

No Rio de Janeiro, o maior expoente deste “capítulo da confeitaria” é um italiano. Andrea Panzacchi deixou Bolonha em 2009 e, já no ano seguinte, inaugurou em Ipanema a sorveteria Vero. Se na Itália natal atuava como sommelier, aqui parecia fazer sentido mudar de área e investir na produção de sorvetes. Não apenas  pelos verões inclementes da cidade, mas porque vislumbrou nela uma lacuna: não havia quem fizesse gelato de alta qualidade, produzido diariamente de modo artesanal, sem base industrializada.

Embora tenha no cardápio permanente clássicos italianos como pistache e gianduia, as frutas tropicais sempre foram sua maior motivação: “O uso de frutas e castanhas sempre me pareceu o lado mais interessante desse trabalho, que me permite explorar a riqueza do País. Sempre que possível, tento recebê-las in  natura. Pitanga, por exemplo, a maior parte das pessoas usa polpa com caroço. Minha equipe já chegou a passar oito horas retirando caroços. É trabalhoso, mas a satisfação do resultado é muito maior”.

Ao longo dos anos, empenhou-se em ir além das feiras locais em busca de variedades menos conhecidas. Não demoraria a chegar ao Sítio do Bello, que hoje lhe fornece boa parte das frutas nativas transformadas em impecáveis sorvetes e sorbets em sua loja: “Com Douglas consigo as mais diferentes, as mais  esquecidas”, conta. A partir delas, faz um trabalho de persistência, nem sempre fácil.

“Às vezes é difícil vender quando se trata de frutas nativas menos conhecidas. Quando fiz sorvete de cabeludinha, por exemplo, não vendi muito. Já a grumixama, se dizemos que é a “cereja brasileira”, as pessoas se interessam em experimentar, porque fazem uma associação com algo que conhecem e que é de fora”, reflete.

Por mais que reconheça que os brasileiros ainda valorizam mais os sabores estrangeiros, constantemente se surpreende com a reação de alguns clientes aos sorvetes de certas frutas. “Alguns desses sabores evocam as lembranças das pessoas: frutas que comeram ‘no pé’, seja nos quintais ou nas fazendas. É algo poderoso, precisa ser melhor explorado.”

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COM AÇÚCAR, SEM AFETO
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Nossa opinião sobre a sorveteria de Jefferson Rueda no Centro de São Paulo